Crônica: O Craque e o Crack
Crônica: O Craque e o Crack
Do alto do Morro, avistávamos do outro lado do rio os três campos de várzea que nos proporcionava todas as tardes da semana belas jogadas improvisadas. Era uma rivalidade sadia, pois os anfitriões também eram jovens da periferia que sonhavam com a carreira de jogador de futebol. Ora vencíamos, ora éramos derrotados, porém, o objetivo era realizado, pois havia arte naqueles momentos de paz. Entretanto, houve um belo dia em que o cal foi substituído por marcações de barbantes no interior do campo.
Era o início da construção de uma nova comunidade que invadira o nosso espaço, o nosso único lazer, de forma opressora. Alguns malandros vendiam lotes no interior e ao redor do campo de futebol.
Uma semana depois surgiam seres vindos de vários lugares a suspender paredes desniveladas nas posses doadas pelo governador que admitia as invasões por todo o Estado do Rio de Janeiro. A densidade demográfica aumentara naquele quadrado que antes suportava apenas vinte e dois peladeiros e quebrada as regras, centenas de indivíduos habitavam o lugar das insinuantes apresentações dos artistas da bola. Titulados cidadãos eram donos dos votos falados e fomentavam a sede dos empreiteiros disfarçados de homens públicos.
Passaram-se algumas décadas e aquela fábrica de “craque” fora transformada em fábrica de “crack”, aonde a disputa não é mais a pelota, é o cargo de gerência da empresa terceirizada pelo poder patológico.
Ouço estampidos de fuzis todas as noites que me assento ao lado da cama do meu mestre pai que não é capaz de escutá-los, mas vê o meu semblante cansado de tantas aclamações para que um dia volte a nascer do outro lado do rio, gramas no lugar das pedras cristalizadas.