No fio da navalha

Eu passava sempre em frente à barbearia do Joaquim. O movimento era bom, ele estava sempre com um cliente. Era um português alto, sotaque forte, tinha uma barba bem feita e também um bigode. Eu às vezes parava na porta, procurando qualquer coisa na bolsa, só para ouvir a voz daquele sujeito, contando as histórias de um mundo que largou, ainda menino, em Aveiro, cidade que morou quando criança.

Morria de vontade de entrar e marcar um horário, mas era barbearia, ele não cortava cabelos femininos, então eu ficava pensando em uma forma de ficar por mais tempo ali, até escutar toda a prosa. A sorte é que em frente ao estabelecimento, tinha um ponto de ônibus. Eu ficava em pé por um longo tempo. Esperava passar todas as conduções, mas não tomava nenhuma. Meu intuito era ouvir o português bigodudo da barba bem feita com uns olhos profundos que contava histórias interessantes àquele que estava sentado à sua frente, com a navalha na nuca.

Certo dia eu ouvi uma história que me tocou o coração. Percebi em sua voz um pouco diferente, aí agucei meus ouvidos, porque o tom dele ficou mais baixo como de costume. Ele falava de uma namorada que teve na escola. Era uma doce menina que usava tranças e escrevia poemas. Percebi quando largou a navalha no bolso do avental, que usava costumeiramente, e limpou uma lágrima de forma disfarçada.

Aquela menina balançou o coração lusitano, que atravessou o mar antes de ter a chance de conhecê-la mocinha. Daí em diante, ela não saiu da sua memória e do seu coração. Ficou para sempre a sua imagem, o sonho de fazê-la a corte, casarem e terem filhos... ora pois!

Ele disse que não teria vindo para o Brasil se já fosse um rapaz, mas o pai decidiu se mudar com a família para tentar uma vida melhor. Ele não teve escolha. Deixou para trás a ilusão do amor da infância, nunca mais teve notícias da doce menina, se fez homem e aprendeu o único ofício de usar a navalha no pescoço de alguém.

Cláudia Machado

22/4/18