MOMENTO DE INVEJA

O frio não era tanto, mas o cobertor de lã, vermelho, lhe dava a sensação de conforto e isso o deixava despreocupado, tranquilo e quase a sorrir. A manhã ia alta e a nona hora ficara uns quarenta minutos para trás. Um sol preguiçoso aquecia, mas não era suficiente para queimar ou incomodar nem mesmo uma criança. A semana já passava da metade, pois era Quinta Feira, mas bem que tava parecendo um Domingo.

As pessoas íam e vinham, algumas apressadas, outras devagar e tinha os que paravam para observá-lo alí (eu mesmo fui um), deitado e despreocupado, sob sua suja, (aliás imunda) coberta de lã.

O barulho local era um tanto infernal, demais alí era o centro da cidade e o som de buzinas e freadas de motoristas afoitos, além dos gritos de vendedores em disputa acirrada, cada um querendo promover seu produto, incomodava os ouvidos de quem por aquela esquina passasse. Mas ele não ligava. Parecia alheio à tudo e seu olhar estava fixo no nada.

Sua fisionomia lembrava um sábio professor em momento mais tanquilo em aplicação de exames escolar de rotina. Olhar sereno e ao mesmo tempo imponente. Parece que nada o incomodava, nada lhe preocupava. Era como se ele fosse o dono de toda e qualquer situação. Parecia mesmo que ele se sentia *o rei da cocada, o dominador autêntico.

Na verdade ele ignorava tudo e a todos naquele momento, se não nos demais, pois ele não se preocupava com nada. Também, ele não precisava mesmo se preocupar, uma vez que nada comprava, nada vendia, nada pagava, nada devia e tudo para ele estava dentro dos conformes ou de acordo com seu sonho. Ele nada sonhava, (ou sonhava?) nada pedia ou esperava. Não tinha despesas de aluguél, supermercado, material escolar, gasolina, farmácia, lavadeira, prestações, telefonia, transportes, vestuário, dever religioso (impostos muito menos), conta de água ou luz. Nada. Nada a pagar e nada a dever.

Se alguém o analizasse bem, se prestasse atenção ao seu estilo de vida, talvez o invejasse. -Quem não sonha em nada dever e desfrutar de total tranquilidade? -Quem não desejaria deitar, dormir e se levantar sem pensar (nem precisar pensar) nas dívidas e obrigações do dia a dia? Isso só para citar.

Mas ele sim. Ele não tinha patrão nem dever trabalhista, nem lista alguma para cumprir. Eu mesmo o admirei por alguns minutos (ele olhava com ar de ternura para uma grande e pesada cadela que dormitava na outra ponta do seu colchão) e quase me contagiei com sua serenidade. Voltei à realidade e segui o meu caminho, pois tinha muito compromisso para aquele dia e de repente, por quase um minuto comparei minha vida com a dele. O sossego desfrutado por ele, TENTADOR e o meu corre-corre, DESAFIADOR. Escolhi algum item aleatório de minha lista e virei a esquina.

Duas horas passadas eu estava dentro do metrô, de volta para casa e comecei pensar no cidadão, que mesmo sem saber me despertou a atenção deitado na calçada daquela praça no centro. Me surpreendi quase com um sentimento de inveja da realidade daquele indivíduo. Sorri para mim mesmo e repreendi tais pensamentos. Mas acho que nunca mais vou me esquecer daquele MENDIGO.

( Pardon )
Enviado por ( Pardon ) em 19/04/2018
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