O rosto dele

Eu devia saber o que vinha junto com ele quando o escolhi, ou o que eu estava aceitando quando fui escolhida. Mais de cinco anos depois, era difícil dizer quem havia escolhido quem primeiro, mas ali estávamos. Juntos. 5 anos depois que o táxi passou a toda velocidade por cima de uma poça e me deixou encharcada exatamente na calçada do bar em que ele costumava tocar nas quintas.

Ele estava lá, mesmo que fosse sexta, havia acabado de trocar o dia do “show” daquela semana e, sem nada para fazer até que o amigo e colega de apartamento viesse busca-lo depois de um encontro com a namorada, ele estava encostado a parede molhada, tentando acender um cigarro.

- Para me aquecer um pouco do frio solitário que fica à noite depois que a chuva que perdurou o dia inteiro vai embora, abandonando cada um de nós com as consequências dela, mesmo que ela própria já não esteja mais ali – ele me explicaria depois.

Eu também iria descobrir pelo seu melhor amigo, Ricardo, que ele também estava enfrentando a noite fria e solitária da sua vida, depois que a chuva de sua vida, uma namorada com quem ficara por 6 anos, o deixara. O dia havia chegado ao fim e a chuva que durou o dia inteiro havia partido para molhar outros lugares.

Mas no meio da noite, literal e figurada, foi ele que estava ali, onde talvez ele não devesse estar, xingou em voz baixa o taxista e me levou para dentro do bar, onde eu nunca havia estado, tirou minha jaqueta molhada e me ofereceu a primeira dose de uísque que eu já havia tomado na vida. Onde eu esqueci que tinha que encontrar o meu namorado no restaurante ao lado.

Porque eu estava encantada com aquele rapaz de cabelos vermelhos e olhos escuros que se sentou ao piano para tocar uma música que eu conhecia de algum lugar, mesmo que não fosse a noite dele, porque afinal era noite de “microfone aberto”, então qualquer pessoa poderia cantar ou tocar. Eu, se quisesse brindar a todos os presentes com minha voz terrível de quem nunca teve uma aula de canto na vida e certamente não tinha uma grama de talento para tal em todo o corpo, poderia.

Mas ao invés disso, eu assisti ao rapaz que tocava o piano como se fosse a única coisa que ele deveria fazer no mundo, balançando o tronco ao som das notas, com os fios de puro fogo caindo ora sob seus olhos, ora sob a própria cabeça que queimava, extraindo do instrumento uma canção de Debussy, que as pessoas paravam para escutar e gostavam sem saber o porquê.

- Daniel, mas pode me chamar de Dan.

- Marissa... E eu não tenho nenhum apelido.

Daniel ou Dan tocava o piano como se fosse uma extensão do próprio corpo, sincronizados como irmãos gêmeos, nasceram colados, foram separados e se encontraram alguns anos depois, prontos para passar cada minutos juntos, recuperar o tempo perdido.

Dan ganhou um prêmio naquela noite, mesmo trabalhando para o local, ele recebeu o cheque das mãos do próprio dono, sem que ninguém apontasse que ele não poderia sequer está competindo, porque afinal ele trabalhava ali.

- Eu sou insignificante, ele não decoraria meu rosto se me visse mil vezes... Nenhuma das pessoas aqui também não. Mas o que eu toco importa, o que eu toco eles param para ouvir e pra mim está bom assim.

- Você tem um talento tão único que fica difícil acreditar nisso.

Mas algo nos olhos dele me fazia querer acreditar, tornava fácil acreditar naquele estranho, naquele ruivo que eu nunca havia visto na vida, mas cujo rosto desconhecido eu queria desesperadamente tocar.

- Mas eu não me importo. Eu poderia viver sem que nenhum ser humano na Terra reconhecesse meu rosto, se mesmo assim eles escutassem o que eu toco.

- Se todos os outros seres humano na Terra esquecesse seu rosto, eu ainda lembraria dele.

Ele riu, antes de levar o copo mais uma vez àquela boca que, juro por Deus, eu poderia beijar a noite inteira, sem interrupções e ainda não seria o suficiente.

Eu não sei que horas o relógio marcava quando ele me levou pra casa, caminhando, mas eram 23:05 quando eu perguntei se ele gostaria de entrar e 23:06 quando um sorriso brincou nos seus lábios e eu soube que ele havia decidido. Eram 23:10 quando eu chequei todas as mensagens e chamadas perdidas da noite anterior, a maioria do meu namorado.

Eram 09:48 quando ele terminou comigo por mensagem de texto na manhã seguinte, mas isso só eu não veria até depois do meio dia, tampouco me importaria naquele ou em qualquer outro horário, porque durante a manhã inteira eu estive na cama com um rapaz de cabelos ruivos e, eu confirmei quando o sol nasceu e entrou pela janela, os cabelos dele queimavam ainda mais sob a luz. Tanto quanto o fogo que queimou entre os lençóis a maior parte da noite, labaredas alimentadas pelo combustível que emanava do meu corpo e do dele.

Então veio o restante do dia, a noite e o dia seguinte... E semanas e outros dias, com noites de música e amor. Amanheceres dos 5 anos seguintes, a partir do momento em que ele aceitou entrar na minha casa e eu desejei que ele não saísse mais, tampouco ele queria sair também e, conforme eu o segurava sem fazer nenhuma força, ele me abraçava igualmente leve, nos tornando um, acorrentados por um sentimento que tinha som, nascido não sei de onde, não sei por que, mas já estava lá quando paramos para nos perguntar.

Ele levou os pianos e as roupas para minha casa e nada nunca fez tanto sentido quanto ver as coisas dele lá, algumas no guarda roupa, outras ainda em caixas, sua escova de dente encostada à minha, seus livros nas prateleiras ao lado dos meus, suas pernas entre as minhas todas as noites, meu corpo abraçado por sua alma antes de ter minha existência abraçada pelo sono.

Em muitas noites de sexta, eu fui ao bar apenas para vê-lo tocar, em muitas manhãs de segunda, ele me acompanhou até o trabalho para prolongar o nosso final de semana. Em muitas tardes de sábado, ele tentou me ensinar a tocar, mas o meu som preferido no mundo era o que ele mesmo fazia ao encostar os dedos nas teclas. Eu podia ter certeza de que Dan era um se mágico cujos próprios dedos produziam a música pela qual cada vez mais eu me apaixonava.

E como poderia não me apaixonar? Ela estava sempre lá. Nas noite de amor, no toque de despertador, nas viagens de carro e quando não havia nada para fazer. Quando nos uníamos para arrumar a casa, quando ele precisava lembrar de um verso especifico para dizer o quanto me amava.

Quando ele foi demitido do bar e passou dias na cama, entregue à tristeza e à desesperança, quando eu completei 30 anos e ele compôs uma música para nós, a cada aniversário de namoro quando ele tocava algo que eu nunca o havia ouvido tocar, quando ele me pediu em casamento no último mês de abril.

E também quando ele precisou trabalhar demais, em mais de um bico, para ajudar a nos sustentar e eu colocava sua música gravada para aplacar a saudade, quando ele começava o dia ao piano para pedir desculpar por ter chegado muito tarde e já ter me encontrado dormindo, quando brigávamos e nenhum dos dois queria dar o braço a torcer e falar.

- E se eu amasse a música que você toca mais do que eu amo você?

- Desde que você não esquecesse meu rosto...

- Eu pensei que isso não importasse, desde que eu te escutasse.

- Isso vale para os outros, não para você.

- Mas por quê?

- Porque eu também não os vejo, eu também não decoro seus rostos. Eu toco para eles, então é justo que eu me importe apenas que eles escutem a música. Mas você... eu te vejo. O seu rosto, eu o vejo mesmo enquanto toco...

- Talvez você goste apenas disso, de ver o rosto de alguém que te escuta. Talvez seja essa a única diferença de mim para qualquer outra pessoa no universo.

- Você vai me deixar?

- Não... – mas eu já havia demorado demais para responder – Mas se você puder jurar que me ama mais do que tocar para mim, eu juro que amo mais você do que amo te ouvir tocar.

Mas ele não jurou. E eu também não. E eu sabia que nenhum de nós iria.

Daniel, meu músico preferido no mundo inteiro, comemorou seu próprio aniversário de 30 anos na semana passada, com o melhor amigo, que o ajudou a tirar as coisas da minha casa duas semanas antes, menos o piano que, por ser muito pesado, ele deixou para outra hora. E eu não tentei convence-lo do contrário.

Também não disse que eu queria que o piano ficasse para saber que ele poderia voltar, para saber que eu veria seu rosto mais uma vez, para saber que, na mais remota possibilidade, eu poderia ouvi-lo tocar e talvez, apenas talvez, eu conseguisse sentir de novo o que eu já não sentia tanto pelo meu ex-noivo.

- Você sabe, deve saber, que no momento em que você mudar de ideia, eu volto pra casa. Eu volto para você, porque não há nenhum outro lugar em que eu queira estar mais do que eu quero estar onde quer que você esteja.

Sem querer responder a promessa dele – com um sim ou com um não – e sem querer fechar completamente a porta pela qual ele estava prestes a sair, eu só pude reiterar a promessa que realmente importava para mim:

- Eu nunca vou esquecer seu rosto, seu rosto lindo, seus cabelos que me encantaram desde o primeiro momento, seus olhos profundos... Mas acima de qualquer um deles, o seu rosto.

- Eu abriria mão de ser ouvido pelo mundo inteiro, se você mudasse de ideia... Se meu rosto ainda fosse a última coisa que você quisesse ver antes de dormir e a primeira ao acordar.

Mas ele sabia que não era, mesmo que eu quisesse muito que fosse.

Semana passada, Daniel me enviou um CD, gravado com todas as músicas que ele compôs para mim ou para a gente durante nosso relacionamento. Eu guardei na prateleira sem escutar, apenas porque eu não preciso, porque eu me lembro de cada nota e, se eu fechar os olhos, posso lembrar do movimento único que seus dedos faziam ao tocar aquela tecla específica.

O melhor amigo dele me disse que ele pintou o cabelo de preto, porque o fato de ser ruivo fazia com que ele lembrasse de mim e a atual noiva dele não gostava de ter essa lembrança na cabeça dele. Figurativamente ou literalmente.

- Talvez tenha sido por isso que ele te mandou o cd. Ele tinha gravado há bastante tempo, pouco depois que vocês terminaram. Fui eu que fiz ele não mandar, ele estava muito vulnerável e eu achei que fosse melhor assim. Desculpa.

- Tudo bem, não teria feito diferença mesmo. Eu pediria desculpa a ele se ele estivesse ouvindo isso.

- Talvez eu conte a ele mais tarde e acrescente que você se desculpou.

- Você faria isso?

- Sim... E talvez, porque eu não vejo ele mais tanto quanto antes, ele anda muito ocupado com o bebê, sabe...

- Sei.

- Lembra quando vocês se conheceram e ele estava naquela “noite fria e escura” por ter acabado as coisas com a Vanessa?

- Lembro – o próprio Ricardo havia me contado quando Daniel me levou para conhecer o amigo.

- A verdade é que ele costumava usar essa mesma expressão, a da noite, para descrever todo fim de relacionamento que tinha. Relacionamento longo, casinho, coisa de uma noite só...

- Ele falou que a vida era uma noite fria quando nós terminamos?

- Não... Ele falou que a vida era um silêncio. Doloroso. Acho que foi a coisa mais triste que eu já ouvi ele falar.

- Não sei o que dizer...

- Você acha que ele não foi pegar o piano para ser legal com você, mas a verdade é que ele largou de tocar.

- Pensei que ele tivesse parado porque a Alicia fez com que ele arranjasse um emprego “de verdade”.

- Isso foi depois... Antes, ele largou de tocar porque era algo que você adorava. Se bem que se ele não tivesse parado, talvez a Alicia fizesse ele parar porque é algo que também lembra você.

E rimos, Ricardo e eu, como riamos das histórias que ele compartilhava comigo sem culpa alguma sobre o casamento do melhor amigo, cujo relacionamento comigo havia acabado há mais de 3 anos.

- Marissa... Você ainda lembra do rosto dele?

Não respondi, a resposta que eu tinha não satisfaria Ricardo, tampouco Daniel, para quem ele certamente contaria minha resposta. Porque minha resposta não era um sim ou não. Minha resposta envolvia a forma como eu, mesmo sem saber tocar, ainda passava os dedos sobre o piano – sempre no mesmo lugar – para tentar imitar os sons que Daniel fazia.

Minha resposta envolvia dizer que não, eu não lembrava as expressões e as linhas do rosto do amor da minha vida, mas, incapaz de realmente esquece-lo, eu lembrava o rosto de Daniel. Porque eu lembrava de cada som que ele faz e fazia, tocava e compunha. O que identificava o Daniel não era a imagem para a qual ele não ligava.

O rosto do Daniel era o som. E eu devia saber disso desde o começo

Maggie Paiva
Enviado por Maggie Paiva em 16/04/2018
Código do texto: T6310166
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