Amélia, mulher de verdade
A figura feminina na vida da maioria das crianças e que fica gravada para sempre pelos mimos, carinho e contato direto para todas as horas é a figura da avó.
Minha infância foi rodeada de visitas a ela. Filha de imigrantes italianos – sua mãe chegou ao Brasil aos 10 meses- era durona, mas a gentileza e o amor à família eram preponderantes.
Dona Amélia arrebanhava as filhas, filhos e seus pupilos nos finais de semana em sua casa de terreno grande que atravessa o quarteirão de cima a baixo, com pés de jabuticaba, goiaba e outras coisas que criança adora. As mães naquela época não deixavam filhos por perto quando conversavam. Lembro-me das palavras: _Vá brincar, menina! Criança não tem que ouvir conversa de adulto.
Descrever certas situações é necessário. Nos fundos do vasto terreno, onde muitas bananeiras deixavam pendentes seus cachos enormes, havia os banheiros de fossa, em casinhas de madeira e um buraco de onde saía um odor indescritivelmente horrível. Uma tampa também de não ofuscava em nada aquele fedor de fezes e urina que me metiam um medo natural para uma criança. E se alguém caísse lá? Sempre me perguntei. Não sei se era a pobreza ou aquilo era comum, mas sei que esta passagem ficou gravada na mente por muito tempo: o dia que a comida voltou em cima do buraco e não pude me conter caindo todo o vômito fora dele. Como contaria a alguém tal desastre?
Outro momento: este me vem às escuras, em penumbra, pois era muito novinha. Havia um corredor à volta da casa e por ingenuidade, me sentei e fiz as necessidades ali mesmo. Mais uma vez o inesperado aconteceu: sentei-me de bumbum inteiro no excremento. Não devo ter sido castigada com firmeza, pois não me lembro. Mas o ato em si, sabendo ser proibido me marcou.
Dona Amélia pariu treze filhos, sete mulheres e seis homens.
Destes, dois não vingaram ou morreram logo que nasceram. Sobraram, em ordem de nascimento: Antonio, Catarina, Virgínia, Maria, Elvira, Osvaldo, Orlando, Nair, Isaura – minha mãe-, Hermelinda, Luiz. Ufa!
Mais tarde, aos 24 anos, Orlando vem a falecer, vítima de um coma diabético. Restaram dez.
Mas nem tudo era tragicômico. Todos os dez formaram família e tiveram seus filhos. Até onde contei em número de 38, meus primos.
Agora, imagine toda essa turma, somente uma tia morava fora da cidade, todos eles na casa da dona Amélia aos domingos? O cortejo que se formava na frente da casa ao se despedir chamava a atenção. Diziam: ou é velório ou casamento. Ah, sim. Até o velório do avô, marido de dona Amélia, foi na casa, o que era comum naquela época. Um evento quase jornalístico de inúmeras passagens.
De qualquer forma, as reuniões eram uma festa.
Dona Amélia era cheirosa, apesar da simplicidade, sempre limpinha com um coque ao topo da cabeça, saias compridas e as chinelas arrastando no assoalho da grande casa. Quando escolhia feijão, ou separava as cebolas e a comida iria ficar pronta era uma festa. E o bolinho de chuva? Ah, que iguaria! Tinha uma voz forte, incisiva e clara quando queria ser atendida. Mas nunca, jamais, levantou uma palmada ou xingamento por menor que fosse aos netos.
Teve uma vida sofrida, ajudando Manuel Neto, o português bravo e ignorante, seu marido,na lavoura e a quem dedicou a vida com toda a prole. Ia grávida de finalzinho de sol a sol trabalhar. De toda a terra que tinham somente a casa lhes sobrou.
Lembrar tudo isso e reler estas linhas na memória é escrever história de vida, é registrar capítulos de tristezas, alegrias e aprendizado, sabendo que a vida é assim mesmo. Um dia dona Amélia se foi. E um dia a reencontrarei. Mas o que ficou foi a lembrança dos bons tempos. E da dona Amélia, mulher de verdade.