O PÁSSARA LIVRE

O PÁSSARO LIVRE

É preciso ter estado no cativeiro, para usufruir, com prazer, a liberdade. Da mesma forma que, só depois da doença é que damos valor à saúde. Só quem ficou confinado nas regiões polares pode saber o significado de ver e sentir o calor do sol.

O pássaro que estivera na gaiola por tanto tempo ficou impactado por esta amplidão de céu. Suas asas estavam bem mais pesadas, mas, por isso mesmo, o impulsionavam para mais longe da gaiola e para mais alto em direção ao sol. Aspirava, com sofreguidão, o ar rarefeito das alturas; sobrevoava as árvores, as casas, as montanhas que tinham que ser contornadas ou superadas. Nada o cansava neste vôo de gozo e alegria.

Súbito, deparou-se com uma enorme superfície da cor do céu. Era como se estivesse em uma esfera da mesma cor. Céu e mar se confundiam na sua vista despreparada para tal espetáculo. Que era aquilo, se perguntou surpreso? Lembrou-se da professora que dissera que o Criador havia povoado os oceanos de peixes e o espaço de pássaros. Mas onde estavam estas criaturas que não eram vistas do alto? Voando em espiral foi se aproximando da água e viu que no seu interior havia vida! Plantas, algas, se mexiam como num bailado sincronizado. Cardumes iam e vinham obedecendo a ordens mudas. O colorido dos corais enfeitava, ainda mais, o cenário contemplado pelo pássaro. Que maravilha era a criação!

De repente, ouviu uma explosão e a seguir labaredas subiram no horizonte. O pássaro voou em direção ao ocorrido para entender este mundo novo e, ao mesmo tempo, para reclamar com o causador da quebra da sua contemplação. O cenário era devastador. Um navio tanque, que transportava em seus porões, toneladas de petróleo, havia se partido e uma mancha negra se espalhava no verde das águas, contaminando-as e retirando do líquido o oxigênio absorvido pelos peixes em sua respiração de sobrevivência. Como podiam fazer isto com a obra do Criador, pensou o pássaro? E, surpreso, confuso e assustado, voou para bem longe do acidente, tentando tirar de sua memória a cena dantesca.

Voltou à mata que conhecera na sua infância. Cansado, pousou em um galho de árvore para refazer as forças e recompor-se do que assistira. Estava absorto, lembrando a sua saída da gaiola, seu vôo sobre o oceano, a explosão do cargueiro, quando os galhos à sua volta e o que estava pousado começaram a tremer. Seria um terremoto? Como resposta, ouviu o barulho de uma moto serra que escolhera justo aquela árvore para ser derrubada. Porque, para que, se perguntava atônito o pássaro? Era uma árvore tão bonita. Tinha galhos tão harmoniosamente distribuídos; as pontas cheias de sementes que seriam comidas pelos pássaro, caídas no chão para germinar novas árvores ou se tornariam frutos carnudos que alimentariam os homens. Por que destruir tal tesouro?

É que o pássaro não conhecia o dinheiro que gera, ambição de mais dinheiro e, com ele, conquistar o poder de fazer o que passasse pelo pensamento cobiçoso do ser humano.

Quando recebeu a visita do Filho de Deus em sua gaiola, ele pensou que só o seu egoísmo, preguiça e desânimo deveriam ser mudados e tudo mais voltaria a ser paraíso. Não é assim. Ao pássaro que saiu da prisão é atrelada uma responsabilidade social e participativa no equilíbrio que foi quebrado pela criatura, após a criação. O livre arbítrio não significa que posso fazer o que tenho vontade. Meu livre arbítrio acaba onde começa o do outro. Eu vivo, cuidando de mim, para dedicar-me ao outro e, juntos, reconquistar o equilíbrio que nos foi dado no início do mundo. A idéia de Deus era perfeita; a criatura formada do barro foi destinada a ser feliz e desconhecia que a felicidade, para a qual foi gerada, era muito séria e importante: manter e cuidar do meio ambiente que lhe fora presenteado. Este jardim não foi, amorosamente elaborado nos mínimos detalhes, para que o homem, como uma criança mimada, quebrasse o brinquedo, em vez de brincar com ele. Pobre criança que agora chora. Chora porque ela mesma quebrou seu brinquedo. E então? O que fazer para reparar o mal?

A fêmea saíra da gaiola, ganhara a liberdade, sobrevoara o oceano, admirara os peixes e vegetação marinha, fugiu para a floresta e não aprendeu a lição principal: seu egoísmo fazia com que continuasse a pensar só em si, no seu conforto e nas suas aflições, colocando, nos outros, a culpa de todo o mal feito. Via os bandos de aves esvoaçando, tanto sobre os mares quanto sobre a terra e permanecia só. Lembrava-se do encanto que lhe causara o macho colorido que a convidara a seguirem juntos e ela recusara. Sentiu falta de partilhar a sua indignação com a contaminação dos mares e a devastação das matas. E, pela primeira vez em sua vida, juntou-se a um bando que cruzou os céus. Conheceu outros diferentes da mesma espécie. E, quanto mais admirava a diversidade, mais se aproximava da unidade. Observava que, vistos de fora, todos eram iguais: a cor, a plumagem, o modo de virar a cabeça e bater as asas. Mas, quando passava a primeira camada superficial, as diferenças começaram a aparecer e isto a encantava e a desafiava a conviver com o diverso. A ambigüidade do ser humano que ama os iguais, se identifica com eles, mas é atraído pelo oposto, confirma o ditado popular: os opostos se atraem.

O pássaro fêmea encontrou finalmente sua família, sua comunidade e, na comunidade, o líder se encantou com ela e formaram um casal. Ele tinha as mesmas preocupações ecológicas que ela e achava que a destruição do planeta seria a destruição da própria criação. Como ele não conhecera o Filho de Deus, não via solução possível para interromper esta seqüência.

O pássaro fêmea logo sugeriu chamá-LO. Ele lhe ensinara a sair do cativeiro e certamente faria o mesmo com o homem. Assim que pensou, Ele se materializou diante dos seus olhos, sorrindo mansamente.

- E aí, pássaro ex-cativo, o que desejas desta vez?

- Desejo que, como me ajudastes a sair da gaiola, ensine também aos homens os valores desta vida e deste mundo.

- Fiz muito mais do que isto, minha amiga. Encarnei-me no seio de uma mulher maravilhosa e me fiz, por amor, um deles. Vivi em seu meio espalhando o bem e ensinando que o Criador não era um Javé vingativo e justiceiro, mas um Pai, um Abbá amoroso. Curei os cegos, consolei as viúvas, perdoei pecadoras, sarei leprosos, fiz surdos-mudos falarem e qual foi o resultado? Acharam que eu estava desordenando suas vidinhas cômodas, me prenderam, me açoitaram e me condenaram à morte!

- E ninguém foi em seu socorro? Nem os curados, nem seus amigos e familiares?

- Que podiam fazer? Eles nunca aprenderam a quebrar regras humanas para colaborarem com a Lei de Deus. Fui julgado e colocado em uma cruz onde morri, após muito sofrimento, em resgate destes mesmos que me condenaram. Se você compreendeu o que eu falei, interceda pela humanidade ao Pai, como faço por toda a eternidade. Pode ser que um dia eles compreendam a injustiça, a cobiça, o desvario que os prende. Assim como você ficou, por tanto tempo, prisioneira da gaiola. Neste dia eu voltarei e, diante de todos, levarei toda a criação para a Nova Jerusalém, que será perfeita e para todo o sempre.

São Conrado, 6 de julho de 2007

Gilda Porto
Enviado por Gilda Porto em 30/08/2007
Código do texto: T630847
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