As Três Fronteiras - A pé na Ponte da Amizade

Quando avistou o viaduto para alcançar a BR 277 e dali avançar até cruzar a Ponte da Amizade, notou que a fila de veículos já começava na Avenida JK, onde estava, e já havia carros parados na BR. Começou a avançar lentamente, metro a metro, notando o trânsito aos poucos se travando. De repente, empacou de vez. Não podia acreditar: saíra uma hora antes em relação ao horário paraguaio e, a partir daquele engarrafamento gigante que se anunciava, calculou uma demora de umas duas horas para chegar ao trabalho. A menos que aquilo fosse uma miragem e não uma fila de carros se formando, já a uns quatro quarteirões antes do viaduto. Mas era aquilo mesmo, e a perspectiva era chegar tardíssimo, se me permitem, ao trabalho.

Pensou sair da fila. E saiu. Como é de praxe na fronteira, foi costurando, pedindo passagem, dando “likes” e sorrisos pros outros motoristas, nem sempre muito amigáveis. Passou da última fila à direita para a última à esquerda, num total de quatro faixas, e retornou pela avenida JK de volta ao centro de Foz do Iguaçu. A primeira ideia era voltar ao centro da cidade, resolver problemas de banco e outras pendências sem perder tempo na fila e, depois, encarar de novo o trecho para, sabe Deus, chegar ao trabalho às 10 horas do Paraguai, duas horas depois do início do expediente e quatro depois de ter saído de casa. Com aquele atraso, o escritório estaria esperando de boca aberta, pronto para engoli-lo, se é que sobraria algo dele após os sobressaltos para cruzar o rio Paraná e entrar em Ciudad del Este.

Na volta pela Avenida JK, sentido centro, tomou subitamente a decisão de dobrar à direita e chegar até a av. Beira-Rio, um atalho para a Ponte, com uma ideia se formando na cabeça: guardar o carro num estacionamento e cruzar a pé. Pensamento e ação se conjugaram e em poucos minutos o carro já estava devidamente estacionado em local seguro.

Deixa o veículo e caminha umas dezenas de metros até se misturar à multidão anônima que cruza incansavelmente todos os dias a Ponte da Amizade: a pé, está democraticamente exposto a assaltos e atropelamentos. O espírito juvenil toma conta do nosso amigo e a manhã ainda fresca e as pesadas águas do rio brilhando ao sol lhe dão ânimo para a aventura. De repente, se descobre feliz sendo parte da multidão e esquece momentaneamente a inquietude que lhe domina a alma: o que move tanta gente a enfrentar essa loucura todos os dias?

O caminho passa primeiro pela alfândega brasileira, onde ônibus e carros e motos e caminhões disputam espaço. Passada a alfândega, começa a verdadeira travessia da Ponte da Amizade. Pela passarela dos pedestres, lado direito, sentido Paraguai, vão centenas de pessoas apressadas, como formigas cortadeiras, cada um carregando seu universo paralelo. Estudantes, comerciantes, compristas, turistas y otras cositas más...

Ultrapassando e sendo ultrapassado, segue ele. Logo lhe chama a atenção, no meio do rio, à direita, a Ilha Acaray, reserva ecológica pertencente ao Brasil, que dizem ser um vulcão adormecido povoado por cobras venenosas. Uns querem nela um santuário para a Virgem de Guadalupe, padroeira da América Latina. Faz sentido: afinal, estamos nas Três Fronteiras. Outros, menos devotos do que esses primeiros, querem um cassino. Afinal de contas, faz sentido também: esta é uma região turística. Não sei se o IBAMA vai confiscar o santuário das cobras e entregá-lo à Virgem ou a empresários de Las Vegas. O futuro dirá.

Quase chegando ao outro lado, nosso amigo é tentado a olhar para as águas do rio, deslizando langorosamente sob a ponte, depois de escapar das comportas de Itaipu, apenas a alguns quilômetros rio acima. É algo fascinante. E justo por ser fascinante, subitamente, desvia o olhar lembrando-se de histórias de sereias fluviais que atraem os homens para aquelas águas. Não são poucos os casos de afogamentos no rio e, em outras épocas, sem proteção lateral adicional, muitos dali se atiraram, presos de uma angústia infinita ou apressados para conhecer o outro lado, não do rio, mas da Existência, se é que me entendem.

Chegando ao Paraguai, uns dirigem-se à imigração para fazer a entrada, outros passam direto. Os carros e motos nos cruzamentos formam mandalas, brotando de todo lado e compartilhando o espaço onde deveria caber apenas um corpo. Ninguém se aborrece exageradamente por isso, solta um palavrão e já termina. Coisas da fronteira.

Nosso amigo sobe a ladeira que conduz ao centro de Ciudad del Este, onde edifícios modernos e imponentes dividem o espaço com velhos prédios construídos nas décadas de 70 e 80, sem qualquer manutenção ou segurança, em ruas onde fios elétricos caem dos postes como confetes e serpentina num baile de carnaval. Tragédias anunciadas!

De qualquer maneira, nosso herói se alegra: sua pequena aventura o encanta, o rio lhe faz um cumprimento:

- Isso aí, amigo. Parabéns, mandou bem.

Assim como nosso herói, a fronteira está viva, desperta, vibrante, às 8 e 30 de uma manhã de terça-feira, e, para a maioria daquela gente, acostumada à labuta diária, como diria Paul McCartney: it’s just another day!

William Santiago
Enviado por William Santiago em 12/04/2018
Reeditado em 19/10/2020
Código do texto: T6306569
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