Assim ou...nem tanto. 135
O Homem Incompleto
Quando a máquina Garratt descarrilou a culpa foi toda posta nos carris. A perfeição jazia inútil, tombada sobre o lado esquerdo, ainda resfolegante e a deixar escapar, branco-azulado, um vapor denso. Quem não achasse defeito nos carris culparia do acidente o maquinista, nunca a locomotiva, 29 metros de ferro, cobre e aço numa impressionante modernidade que a seguir seria ultrapassada. Não basta, no entanto, ser perfeito quando se tenta andar por caminhos que não são os nossos mas chega tantas vezes a vontade e a determinação para eliminar o defeito e prosseguir o sonho. Conheci um António que nasceu rico, cresceu mimado, amadureceu na guerra e perdeu tudo. Nunca antes percebera que era apto, talentoso, capaz de fazer ele mesmo o que se havia habituado a que fizessem por ele. Teve de experimentar, aprender, acordar cedo, trabalhar, suportar calor, frio e hostilidade. Teve de aceitar que a incultura mandasse e teve, para seguir em frente, de esperar a oportunidade de poder dizer o que era e o que sabia. Há gente perfeita que não sabe disso, há gente bonita que não se vê assim, há gente que, por falta de dentes ou de uma mão, desiste de viver com dignidade e aceita que outros a alimentem e vistam, a subsidiem, pactuem com uma tristeza sem razão profunda, a única que deverá ser tolerada numa sociedade adulta. Todos têm em si a perfeição e, pelo menos, um talento. Acreditem. Eu nunca minto às quintas.