DELICADEZA DOS ANOS
Nesta manhã muitas coisas deram errado pra ele. A noite já fora um pouco difícil, pois quase sempre demora para pegar no sono, seu corpo já cansado e debilitado insiste em mantê-lo em alerta e consciente dessa condição de fim.
Mas ele acordou!!! Quantas vezes já me peguei ansiosa por ouvir a porta de seu quarto logo cedo se abrir contrariando as expectativas do inevitável.
Mas para alívio meu ele acordou, e como de costume, vai primeiramente ao banheiro para esvaziar o papagaio, enchido durante toda a noite. Depois volta ao quarto, pega alguns de seus metódicos comprimidos, que vão aumentando a cada ano e depois se veste com a roupa de ficar em casa e se dirige à cozinha para preparar seu café.
Mas hoje o peguei fazendo algo impensado, por que não é algo que decorreu do físico esgotado, mas sim da mente que agora está inquestionavelmente perdida em algum lugar intangível para ele buscar.
Não sei se é engraçado ou cruel o envelhecimento, ou talvez nenhum dos dois, vai ver é só fatídico, algo de que não se pode escapar, uma sentença a ser cumprida das mais diversas formas. E ainda não entendo muito bem qual é o critério utilizado para determinar a forma de se envelhecer.
Meu querido avô é minha referência de longevidade, o vejo insistir em existir, em manter-se sempre íntegro em suas atitudes, mantem ainda o nervosismo da mocidade, mas agora com mais doçura distingue os acontecimentos que necessitam de uma ação mais energética daqueles que devem ser levados com bom humor e certa passividade.
E apesar das atitudes que já delatam certa insanidade é inegável sua sabedoria de vida, sempre nos surpreendendo com uma palavra que com toda nossa "sanidade" não poderíamos ter. É como se para as coisas verdadeiramente importantes ele ainda mantivesse o essencial, a capacidade de entendimento da vida e de sua marcha, já para as coisas triviais do dia a dia, aquelas coisinhas que só servem para nos manter vivos de corpo, ele já não os executa com tanta habilidade, isto é fato.
Olhando para o processo do meu avô preocupo-me em saber como vou envelhecer, que traços o tempo me roubará e quais ele trará. Hoje uma jovem, nem tão jovem assim, mas com uma carga de ceticismo inadmissível a homens persistentes como meu avô e talvez essa altivez da mente permita a ele carregar tão bem seu corpo. É certo que esse corpo já apresenta os sinais dos 99 anos de vida que ele completou. Ele tem andado tão devagar e debilitado que parece que o mais fraco vento seria capaz de leva-lo para onde não pretendia ir.
Ainda hoje me falou coisas que se dizem quando se vai embora de vez, quando se sabe que não estará mais ali. As palavras se soltaram de sua boca e chegaram até mim sem grandes pretensões. Não havia nenhuma frase de impacto, nenhuma promessa de felicidade ou garantia de que tudo ficará bem. Mas que velho sábio e que jovem descrente acreditaria em tal apólice de seguro.
Não parece tarefa fácil passar para gerações futuras a delicadeza dos anos que aprendemos, pois, só nossas experiências foram capazes de nos ensinar, então o que mais podemos fazer para os jovens é incentivar a que busquem suas experiências acima de qualquer receio, só a vida pode nos ensinar a viver.