NUM TEMPO DE CARTAS


Por vezes me vejo recriando cenários e...
Era ali no segundo andar daquêle pequeno prédio de esquina que a janela sempre aberta espiava a paisagem.
À sua frente,as paralelas da linha férrea dividindo a cidadezinha em duas pacatas porções deixavam expostas ,do outro lado da ferrovia,algumas palmeiras,os dois hotéis proximos à estação e o amontoado de toros de bracatinga que lhes abasteciam fogões.
Poucos automóveis,pouco movimento de gente pelas ruas...Naquêle bucolismo,paz e sossêgo,aproveitavam para flertar à sombra das acácias na única praça existente.
A novidade ficava por conta da novena das quartas feiras trazendo um bom número de devotas à espera do ônibus que as levaria ao outro extremo daquêle nosso projeto de metrópole.
Entre uma carola e outra resgatava-se sempre algum brotinho a quem lançava-se um "olhar 43",cheio de segundas,terceiras e até quartas intenções.
A brecha entreaberta pelo olho gigante da janela oportunizava a vazão de outros atentos pares de olhos,divididos entre papeis,teclados de "Remingthons"(moderníssimas!),manivelas de "Facits" e a atenção direcionada ao outro lado da praçinha,onde funcionava a agência dos Correios.
Anos 68/70...Vivia-se um tempo de ideais,algumas incertezas e questionamentos.A adolescência posta em sua plenitude.
Euforia total!...Ora rebelando-se,sem justa causa,ora alçando vôos em busca de sonhos,de afetos,amores e novos horizontes.
Calcado numa estatura mediana,um olhar sisudo ,apertado entre proeminentes bochechas represadas na vastidão do bigode,o agente dos Correios cruzava a calçada vindo da estação de trens.
Chapéu "Panamá",camisa branca e a saliência generosa duma barriga realçando suspensórios a prender-lhe as calças era a marca registrada do “Senhor das quinze horas”,empurrando a carriola por onde amontoavam-se malotes de correspondências.
Aquele visual conferia-lhe um ar de austeridade e comando incapazes,porém,de embaçar o brilho da admiração coletiva que lhe era devotada.
Afinal,estava ali,o portador das mensagens tão esperadas.Dos relatos plenos de novidades, alimentadores de sonhos e ilusões.Perseguiam-lhe, olhares afoitos do segundo andar do “pequeno prédio da esquina”.
Sêres famintos de amizades e relacionamentos por correspondência! Modismo da época.
[Uma espécie do Facebook nosso de cada dia]
Aos embalos de "I Started a Joke" dos Bee Gees e "Eu sou terrível" do Roberto, conseguia-se em programas de rádio alguns enderêços,que somados àquêles obtidos nas páginas das revistas "Capricho" e "Sétimo Céu",rendiam no recebimento de algumas dezenas de cartinhas recheadas de relatos aparentemente sinceros ,algumas inverdades e falsas expectativas em perfis traçados muito além da realidade.Fotos 3x4 nas melhores pôses,permeadas de sônetos,poemas e eventualmente algumas folhas de papel-carta cheirando à "Toque de Amor" da Avon,o must da época.
Nem preciso dizer das linhas que as respondiam,borradas à "Lancaster",o cheiro do homem dos anos 70 rsrs.
Na saleta,abaixo da linha,a batalha era travada em nome do pretenso "Ir buscar o malote do escritório"!
Uma disputa acirrada entre um grande número de voluntários pré dispostos a enfrentar a “árdua missão”.
Caixa Postal 104...Lembro-me ainda.Alguns jornais,revistas fiscais,duplicatas(os boletos vieram muito depois) ,e...A pilha de cartas,ansiosamente esperadas.
No único guichê,entre as paredes escuras do Correio,emoldurava-se a face de dona Aurora.Os cabelos grisalhos e aquêle seu olhar melancólico,desfaziam-se no esbôço de um sorriso ligeiro, acompanhado do conhecido balançar de cabeça,diante da “AURORA” da vida que raiava na euforia daquêles bobocas sonhadores.

Joel Gomes Teixeira