O TREM PARA SANTO ÂNGELO

Não sou saudosista até por achar que a época de hoje é muito boa. Mas contar histórias e recordar as boas experiências de nossas vidas é ótimo.

O TREM PARA SANTO ÂNGELO

Eu tinha cinco anos. Meu pai havia concluído o Curso de Moto Mecanização do Exército, no Rio de Janeiro. Ele fora transferido para Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul. Gaúcho de Alegrete, meu pai gostou de voltar a morar no seu estado natal. Fiquei torcendo, na minha ótica infantil, para mudar logo e conhecer novos amigos e nova cidade. Por incrível que pareça, eu tinha experiência em mudanças, havia morado em Santa Maria, no Rio de Janeiro, na Praia Grande e em São Vicente. Perder amigos que custara tanto a fazer já havia me causado desespero algumas vezes. Quando somos crianças, amigos fazem parte de nós mesmos, e quando tomei consciência de que mudar implicava em deixar amigos, chorei muito e até hoje me lembro da tristeza que senti quando deixei o Rio. Mas as crianças são ligadas no instante em que estão vivendo e, ao contrário dos adultos, não ficam remoendo mágoas.

Faríamos a viagem de trem, em duas cabines leito interligadas, com duas camas superconfortáveis cada e banheiros privativos. Um deslumbramento para uma criança. Hoje, só vemos isso em filmes sobre épocas antigas, tipo Orient Express, onde os trens parecem cristaleiras de tanto brilho. Cada leito tinha uma luzinha própria que se acendia com uma pequena alavanca de metal brilhante, torneiras de metal luzindo e tudo muito bem cuidado. Embarcamos na Estação da Luz, uma maravilha arquitetônica, projeto do arquiteto britânico Charles Henry Driver (1832-1900), renomado arquiteto de estações ferroviárias em várias partes do mundo. Hoje perdida no meio da selva em que se transformou a cidade de São Paulo, a Estação da Luz merece uns momentos para ser apreciada. Foram aplicados vitrais na estrutura metálica, mistura inédita para a época em que foi construída. Inaugurada em 1901, conserva a imponência e beleza originais com belos pilares de granito trabalhado, uma torre com um grande relógio. Além de abrigar o Museu da Língua Portuguesa. Mas nós, brasileiros, não damos o valor que esses monumentos merecem.

E lá se fomos para Santo Ângelo. Uma viagem prevista para três dias e três noites. Sinto ainda o cheiro da lenha queimando na caldeira da locomotiva tipo, ouço o schulep schulep do rodar do trem e o vento batendo quando colocava o rosto para fora da janela, empurrando o cabelo para trás e obrigando a fechar um pouco os olhos. Ás vezes ouvia-se um longo apito característico, avisando que a composição se aproximava de curvas, de trechos perigosos e das estações. À noite, podiam-se ver brasas saindo da chaminé da locomotiva. O traçado das nossas ferrovias era projetado para atender grandes fazendas e pontos de interesse comercial, o que fazia com que as ferrovias fossem extensas. Nossos governos optaram por transporte rodoviário, e a malha ferroviária brasileira diminuiu muitos nos últimos 60 anos.

A viagem atravessaria os estados de São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. Partindo de São Paulo, o trem da antiga Estrada de Ferro Sorocabana percorria o ramal de Sorocaba, até Itararé, que era a cidade da divisa de São Paulo e Paraná. Uma locomotiva da Rede Viação Paraná Santa Catarina assumia a tração, e nosso comboio passava por Sengés, Jaguariaíva, Ponta Grossa e seguia até União da Vitória de lado paranaense e Porto União em Santa Catarina. Essas cidades ficam separadas pelo Rio Iguaçú. Atravessava o estado catarinense parando nas cidades de Caçador, Tangará Herval, chegando a Marcelino Ramos, já no Rio Grande do Sul. Ali ocorre a junção do rio Ibicuí com o rio Uruguai, cujas águas por serem de cores diferentes, demoram para se misturarem.Daí seguia por Erechim, Passo Fundo e Cruz Alta, onde havia baldeação para o ramal de Santo Ângelo.

Muito me impressionaram as mudanças de sotaque, roupas, pessoas e paisagens que se apresentaram no percurso. Em cada parada ofereciam os mais diversos produtos, andando ao lado das janelas do trem. No Paraná e Santa Catarina vendiam queijos, salames, doces, etc. No Rio Grande dos Sul ambrosias, um pão delicioso chamado cuque ou cuca de origem alemã, e frutas como melancias melões e bergamotas. Pela primeira vez escutei tangerina ser chamada de mimosa no Paraná e bergamota no Rio Grande do Sul.

E, finalmente, chegamos a Santo Ângelo, uma pequena cidade, capital dos Sete Povos das Missões.

Mas isso fica para outra história. Paulo Miorim, 08/04/2018

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 08/04/2018
Reeditado em 23/10/2020
Código do texto: T6303218
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