O menino que escavava minhocas no quintal
Minha mente é como uma tela de cinema, em um instante milhares de imagens passam por ela. Em um segundo relembro fatos de minha infância ...
Lá estou eu com cinco anos de idade na sala da professora Eliete, cabelo cortado no estilo militar. Ela prometendo um brinquedo (um carrinho verde) para aquele que melhor se comportasse em sala de aula. Eu ganhei o carrinho. Lembro de ter ficado mais estático que uma estátua, eu não mexia um músculo sequer. Foi fácil ganhar o carrinho de plástico, eu era tão calado e quieto na sala do jardim de infância que um dia mamãe foi aconselhada pela professora a levar-me a um psicólogo. Que engraçado ... hoje sou psicólogo.
Meu pai era sargento da Aeronáutica e morávamos em uma base aérea que tinha um nome curioso: Val-de-Cans. Lembro das ruas impecavelmente limpas e bem tratadas, das casas pintadas em azul e branco e dos guardas armados em guaritas. Havia um cassino e um cinema, o cine Catalina (nome de um antigo avião anfíbio). Quando ainda não tínhamos televisão meu pai levava-nos para ver os programas no cassino. Lá havia outros sargentos, meu pai conversava e bebia cerveja com eles, enquanto isso eu me divertia vendo o Ultraman (antigo programa japonês que mostrava a luta de um herói, o Ultraman, contra monstros).
Eu estudava na escola Nossa Senhora de Fátima com uma porção de outras crianças. Algumas eram filhos de militares assim como eu e outras que moravam nas redondezas da base aérea. Lembro-me do Fábio, um menino que morava no conjunto Marex (abreviatura de marinha, aeronáutica e exército), do Tadeu que era considerado o sabichão da 2ª série, do Baiacu com quem eu era muito apegado (esse menino era bem maior que eu e certa vez cortou o braço de um outro com uma lâmina de barbear).
Acho que por vivermos em um ambiente fechado como era a vila militar, todas as crianças eram um pouco tolas ou puras, sei lá. Elas não tinham um contato forte com a rua como tinham as outras crianças que viviam nos bairros populares. Eu não chamava palavrão e quando disse um pela primeira vez foi sem saber que era um nome feio e que não devia ser chamado por crianças. Quando mudei para um bairro popular estranhei a disposição das casas e até a maneira como falavam uma vez que, na vila militar, convivia com sotaques do Brasil inteiro.
Lembro de muitas coisas que aconteceram naquele tempo. Lembro que havia um coleguinha meu que tinha como brinquedo uma miniatura da Apollo 11. Lembro de meu irmão mais velho que sempre me levava para passear de bicicleta do aeroporto até a Base Naval. Uma lembrança muito bonita é a música Something dos Beatles que um amigo de meu irmão Paulo gostava de cantar. Outra lembrança muito viva e a das jacas que saíamos a pegar (eu era o único garoto entre esses apanhadores de jaca, os outros eram rapazes entre 16, 17 e 18 anos).
Uma coisa que lembro com tristeza e alegria era a Lua. Eu e os outros meninos ficávamos horas e horas deitados no chão da rua, de peito para cima, olhando para a Lua na esperança de ver os astronautas andando sobre ela. Um dia passou na televisão que alguns astronautas russos haviam morrido quando retornaram à Terra. A notícia que corria entre as crianças era que os astronautas haviam morrido porque tinham visto a face de Deus. Era muito difícil para eu entender isso. Para mim um astronauta era como um mocinho que eu via no cine Catalina: não morria nunca.
“Criança feliz, quebrou o nariz, foi pro hospital tomou Sonrisal. Se eu fosse Pelé tomava café, se eu fosse Tostão tirava o calção”. Como a gente gostava de cantar essa musiquinha! Uma vez fomos todos nós, as crianças do colégio, recebermos o Presidente Médici que chegava à Belém. E lá estávamos todos nós de bandeirinhas do Pará e do Brasil nas mãos para recebermos aquele homem alto e de olhos azuis. Só muitos anos depois eu iria saber que aquele homem comandava uma ditadura que estava torturando, matando e tirando a liberdade política dos brasileiros. Era o tempo do “Brasil, ame-o ou deixe-o” e do “Este é um pais que vai prá frente”.
Minha mãe tinha um pato que nós chamávamos de “louro” e que voava dezenas de metros de um quintal a outro. Eu adorava quando ele fazia isso. Lembro que havia uma empregada doméstica que corria atrás de mim com o retrato de uma santa falando que esta iria me pegar, deixando-me apavorado. O medo e a lágrima contida aos sete anos durante os curativos feios por um enfermeiro após uma queda de bicicleta. Lembranças e mais lembranças ...
Agora um turbilhão aflora. Lembro da coleguinha que eu bati porque ela deu gargalhadas quando eu cai em uma poça d’água durante uma brincadeira, as historinhas infantis que mamãe comprava pra gente ler, a esquadrilha da fumaça que fazia acrobacias no céu, uma bolinha enfiada no nariz que custou a sair, minha irmã Juliete que enchia a bolsa de cadernos só para demonstrar que já estudava muito, minha irmã Jane que era chamada por mim de “banana chorona”, meu irmão Jaime que montava um peru imenso que minha mãe criava em nosso quintal dizendo que era um cavalo, as brincadeiras de pira-esconde e cemitério (pique ou pegador e queimada, nomes que variam de estado para estado), mamãe conversando com suas vizinhas sobre o avião militar que havia caído e no qual ninguém sobrevivera, a minha lancheira com suco e pão massa-fina, papai que pegava na orelha da gente e chamava de “gabiru”, minhas quedas tentando andar de bicicleta ...
Eu que queria ser astronauta, que um dia furei o pé em um prego, que despertava cedo para ir para a escola, que brincava de guerra com meus soldadinhos ... Em um segundo tudo isso ficou para trás perdido na poeira dos tempos, tão distante quanto aquele soldado molhado de chuva que patrulhava as ruas da vila militar ou aquele menino que escavava minhocas no quintal.