É fácil desvirtuar o que a gente fala (para Celso Panza)

É FÁCIL DESVIRTUAR O QUE A GENTE FALA

Miguel Carqueija

A propósito da notícia que andou circulando sobre o Papa Francisco — de que certo sujeito, cuja existência eu desconhecia, disse que o papa teria dito que o inferno não existe — obviamente uma notícia falsa - que muitos estão aceitando mesmo sem embasamento, porque lisonjeia suas próprias ideias — lembrei-me de um fato ocorrido comigo. Aliás, na minha vida em diversas ocasiões aconteceu coisa semelhante.

Eu tinha, muito tempo faz, um colega de trabalho chamado Luís. Ele era politizado, partidário do PT e do Lula. Naquele tempo o Lula ainda não chegara à presidência e nós amargávamos o Fernando Henrique Cardoso. Eu era, sempre fui, contra o Lula e contra a esquerda (inclusive contra a esquerda liberal representada pelo FHC). Sempre fui conservador. E, claro, disse ao Luís o que pensava do Lula e suas posições.

Passou-se o tempo. Luís se aposentou bem na minha frente, por ser mais velho. Um belo dia eu o reencontrei. Estava bastante desiludido com o Lula, cujo desgoverno tanto prejudicou o povo brasileiro, inclusive com a monstruosa corrupção. E aí o Luís saiu-se com essa:

“Miguel, você tinha razão quando dizia que o Lula é da direita.”

Caí das nuvens! É claro que eu jamais falei uma asneira dessas. Fiquei meio indignado com o meu amigo. Não sou um desses protagonistas-narradores de contos e romances policiais e, portanto, não posso me lembrar palavra por palavra o que falei, mas a substância foi essa:

“Não, Luís, você está enganado! Eu nunca disse que o Lula é da direita! Ele é da esquerda mesmo, é claro que ele é esquerdista! O que eu disse foi outra coisa: eu disse que o Fernando Henrique é da esquerda! Aliás os dois são amigos! Para mim a esquerda não é coisa boa. Entenda bem: quando eu chamo alguém de esquerdista, não estou elogiando. Estou xingando!”

Acho que dessa vez ele entendeu.

Mas por que será que ele entendeu ao contrário o que eu disse? Imagino que a explicação seja essa: na hora ele entendeu é claro, porque eu não falo grego, mas com o tempo a sua cabeça trocou as bolas. E isso porque o Luís, como tantos brasileiros, atingido pela lavagem cerebral desenvolvida pelos petistas, ficou relacionando em sua mente a esquerda com a defesa dos direitos humanos e a direita com o seu espezinhamento. Assim, se eu falava contra o Lula, só podia significar que eu acusava o Lula de ser da direita. E por ter se decepcionado com o Lula, diante das safadezas do governo petista, só podia concluir que o Lula era da direita. Como se a esquerda não pudesse ter a sua corrupção e mesmo em altíssimo grau. Ou como se a esquerda fosse santa.

Ora vejam até que ponto chega o maniqueísmo da política, prejudicando até o raciocínio de pessoas inteligentes!

Devemos sempre praticar a hermenêutica, a lógica, para entender os acontecimentos e buscar nunca distorcer o que as outras pessoas efetivamente falam. E não podemos ser tão crédulos em relação a boatos e notícias falsas. No caso do papa, ele fala constantemente no demônio, para nos alertar. E isso ninguém me disse que ele disse, eu assisti diversas vezes em seus pronunciamentos pela televisão. Seria muito estranho se ele acreditasse na existência do demônio e não na do inferno.

Mas isso é para outra discussão.

Rio de Janeiro, 5 de abril de 2018.