Estava  profundamente perturbado com a pergunta que Morgana fizera  durante uma aula de religião no Marista: ‘É verdade que José de Alencar é filho de um padre?’ Teve vontade de dizer que o romancista brasileiro era filho do ex-padre José Martiniano de Alencar. Mas, sabia que padre, uma  vez ordenado, mesmo perdendo as atribuições do ofício, nunca deixa de ser padre.  Fez um minuto de silêncio. Beijou o altar da propiciação, e afastou pensamentos que lhe perturbavam a alma. Deu a bênção final, e ficou em adoração ao Santíssimo. E no silêncio de seu coração, ecoava a voz da Madre de Calcutá: Ensinarás a sonhar... Mas não viverás teus sonhos.
 
  
O Auto da Alma se lhe passou na mente. Lentamente, sua respiração diminuía, e as batidas do coração se tornavam menos frequentes. Ouviu  o  rufar de asas: ‘Venha!’  E quando percebeu estava voando em direção  às sombras. A luz sumia na distância, cada vez mais longe. Até que, na última hora, abraçou  a Cruz. Venceu o abismo e viu o anjo negro desaparecer na escuridão. Sobrevoou  a montanha santa e sem temor nem medo, escarneceu do anjo negro e voou para a Luz.

Padre Davi  viu ainda cenas de seu  juízo particular:  São Miguel tentando resgatar sua alma e o Diabo querendo arrastá-la para as trevas. Persignou-se. Selou com o sinal dos cristãos a testa, a boca e o peito. Levantou-se. Tomou a porta de saída.


Sentiu um vento sussurrar em seus ouvidos: A muitos, ensinaste, deste força a mãos  frágeis. Tuas palavras levantavam aqueles que caiam. Agora tu mesmo enfraquecesses. E em lugar do pão tens o soluço.

Fechou a igreja, andou a passos largos até o beco dos aflitos e entrou na tenda do pecado.

Era dia de finados do ano que já passava de dois mil.

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Trecho de "Estrada sem fim..."
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