Semanas Santas em meu interior

Não, eu não lembro se houve algum ano em que passei a Semana Santa longe do meu lugar de origem. Dos 11 anos passados desde o dia em que saí de casa para estudar na “cidade grande”, talvez este seja o primeiro “feriado santo” fora meu povoado. Confesso que se essa foi a segunda vez, é hoje a primeira em que me vejo num profundo sentimento de saudade. Como é difícil passar Quinta e Sexta-feira Santas longe da Maniçoba, aquele vilarejo situado no semiárido pernambucano.

Memórias são despertadas em mim sobre a forma distinta como as pessoas daquele lugar vivenciam os últimos dias da Quaresma. Todos os anos, contagiados por um grande respeito, as pessoas, desde criança, são ensinadas a relembrar e sentir tristeza pela morte de Cristo. Elas participam da Via Sacra, uma encenação do julgamento e morte de Jesus; e são proibidas de escutar qualquer tipo de música em som alto, pagar ou comprar o que quer seja na Sexta-feira Maior.

Quinta e sexta-feira são dias também de se fazer uma “intenção de jejuar”. Fala-se de intenção porque a Bíblia condena o exibicionismo da prática do jejum. Já adolescentes, somos estimulados a realizar tal intenção. Justo nesses dias, quando há comidas deliciosas como feijão de coco, peixe cozido e, de quebra, uma umbuzada de sobremesa. Nesse jejum, é permitido almoçar e jantar. Curioso é o trocadilho dos nomes das refeições nesse período. Jantar significa almoçar e cear significa jantar. Todo mundo, claro, espera atento o relógio bater às 11h para ouvir alguém falar: - "Já pode ir comendo". Só depois de muito tempo compreendi que o jejum é uma forma de estimular o nosso próprio equilíbrio.

O jejum também é o nome dado ao alimento que se quer doar aos vizinhos e familiares. É comum recebermos um leite retirado da vaquinha de alguém próximo, um jerimum fruto da colheita de um tio ou primo ou mesmo um bolo gostoso de massa de mandioca assado na palha da bananeira, chamado de carimã. Frequentemente, ouvimos alguém bater na porta e dizer: - "Eu trouxe o seu jejum". Que conexão comunitária!

Comum também é ir “jantar” ou “cear” um na casa do outro ou fazer uma visita a padrinhos e afilhados com um presentinho em mãos. Lembro quando nosso pai nos levava, eu e minha irmã, quando pequenas, para almoçar na casa da nossa madrinha, a Mariazinha. Aquele dia se tornava um evento. Outro evento era fazer um “Judas”, recheado da planta mela-bode, vestido de roupas e sapatos velhos. Ele era escondido para que ninguém o roubasse e, no Sábado de Aleluia, de madrugada, era colocado na porta de alguém ou saíamos pelas ruas o malhando (chutando, batendo e rasgando).

Hoje, Quinta-feira Santa, na capital de Pernambuco, há aproximadamente 220 km de lá, a gente só sabe que está na Semana Santa por que é feriado e por que vai às peixarias e observa as filas quilométricas para se comprar o tradicional peixe. Ali, vejo cada um na fila muito preocupado em não perder a vez, impaciente na espera e indiferente em relação as outras pessoas ansiosas pela compra. Não há troca do jejum-alimento entre os vizinhos, nem uma visita de padrinhos ou afilhados para receber presentinhos, uma vez que o sentido de comunidade é quase nulo quando se mora em um bairro de classe média nos grandes centros urbanos.

Em um país “cristão”, ideologias de culto ao individualismo, consumismo e prosperidade distorcem o cristianismo primitivo, enterrando a cada dia o que nos resta de comum. Como compreender que pessoas ditas cristãs praticam frequentemente atitudes contrárias ao que o Jesus Cristo pregou? Logo Cristo que lavou os pés dos apóstolos, simbolizando humildade; recebeu mimos da mulher que derramou perfume caro em seus cabelos e ainda se revoltou com a forma pela qual faziam o templo de comércio. Seria cada uma dessas pessoas, na atualidade, uma espécie de anticristo?

Karolina Calado
Enviado por Karolina Calado em 29/03/2018
Reeditado em 30/03/2018
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