Tiranos digitais
O Cirque du Soleil, fundado no Canadá, é reconhecido em todo o mundo como a forma mais inovadora e de execução exemplar que a arte circense já foi capaz de produzir. Seus espetáculos fazem jus ao nome: são uma overdose de luzes, sons, cores, narrativas envolventes e um elenco de artistas do mais elevado padrão técnico. É impressionante o que são capazes de fazer em cima do picadeiro. Difícil imaginar o nível de dedicação para atingirem um limiar tão próximo da perfeição.
Mas o risco sempre ronda esse tipo de atividade.
Tragicamente, pouco tempo atrás, um acrobata caiu quando uma corda se rompeu no meio de uma apresentação em Tampa nos EUA e veio a óbito. Li consternado a notícia e logo ao final o comentário de um leitor:
“Se caiu era porque não era tão bom assim”.
Comentário horrendo, grosseiro e infeliz, pra dizer o mínimo.
Mas está ficando cada vez mais comum na selva digital das redes sociais. O libertarismo da internet está liberando o que as pessoas têm de melhor e de pior também.
A internet deu voz pra todo mundo, o que é ótimo. Mas também deu microfone pra muita gente chafurdar na própria estupidez.
Nélson Rodrigues, sempre ácido nas palavras e preciso na artilharia, vaticinou, numa crônica escrita há várias décadas:
“Até o século XIX o idiota era apenas o idiota e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota. Não tinha ilusões. Julgando-se um inepto nato e hereditário, jamais se atreveu a mover uma palha ou tirar um cadeira do lugar. Em 50, 100 ou 200 mil anos, nunca um idiota ousou questionar os valores da vida. Simplesmente, não pensava. (...) Agora descobriram que são em maior número e sentiram a embriaguez da onipotência numérica. E, então, aquele sujeito que, há 500 mil anos, limitava-se a babar na gravata, passou a existir socialmente, economicamente, politicamente e culturalmente. Houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas”.
Isso foi escrito muito antes da invenção da internet e das redes sociais. Agora os idiotas têm um megafone e uma bazuca com bombas bílicas de estultícia e coliformes que disparam a esmo como se estivessem num fliperama com fichas grátis.
Protegidas pelo conforto do anonimato ou pelo incentivo da claque digital, pacatas pessoas que compartilham conosco as filas matinais da padaria se transformam em verdadeiros tiranos no mundo virtual, metralhando impiedosamente o que aparece pela frente. Nunca foi tão fácil brincar de estilingue. Construir telhados e vidraças sempre deu mais trabalho.
E estamos vivenciando alguns efeitos colaterais um tanto paradoxais. A rede que prometia uma abertura para a difusão de ideias, um novo Iluminismo cibernético, ao mesmo tempo está fazendo com que as pessoas se trancafiem cada vez mais dentro de suas pequenas células de certezas, consumindo apenas teses e pontos de vistas que ratificam suas concepções de mundo já arraigadas. Ao invés da exposição ao contraditório a busca do semelhante, do confirmatório.
Está faltando Educação. Está faltando ouvir o outro. Está faltando paciência. Está faltando autenticidade. A verdade é que está sobrando mentira e faltando verdade.
Preferia que essa fosse uma Fake News, mas infelizmente, é a pura verdade.
O bom senso é apenas mais uma vítima, caindo do alto do trapézio num giro trôpego sem rede de proteção, feito equilibrista bêbado à espera do impacto com o solo e do libertador encontro com o silêncio final.