Indescritível

Há um grande terror hospedado em mim, e sobre o qual eu realmente não partilho nada. Ninguém entenderia.

Imagine o que é andares às gargalhadas todas as noites como se estivesses na companhia de alguém, no quarto. Não é o urso de peluche. Ele é imóvel. Está ali sem nada fazer e nem sabe ao menos se existes ou se és tu o boneco. Não é a almofada, porque apesar de aquele algodão dar-te a impressão de que pousas a tua cabeça sobre carne humana, continuas sozinho. Não são os vizinhos. Eles sabem lá quem és tu? Só estão aí para beber, discutir e trocar impressões ofensivas, no rés do chão, do outro lado da rua, embora as suas conversas entrem à socapa pelos furos paredais da pousada. Não é a TV ligada na sala, até porque a programação é tão previsível que o volume da mesma é levado ao nível zero. Tens o telemóvel desligado e os livros fechados. É apenas a tua cabeça a conversar contigo. Cada coisa que ela fala, cada segredo que revela sobre ti mesmo leva-te sempre à mesma questão: "Quem és tu?".

E o mais engraçado é que não é essa a parte trevosa. O grande terror mesmo não me deixa dizer nada sobre si. Distrai-me com a minha cabeça e não só às noites. Não é normal que eu não consiga dormir ao mesmo tempo falho em estar acordado. Coitado de Deus, já tivemos essa conversa muitas vezes. Não ouço, mudo. Estou sempre a primar na mesma tecla: andar interrupto como um zombie, apressado como rato que foge das garras do felino doméstico, assustado sem nada que justifique. Dentro de casa sou pior que estátua. Na rua sou areia que bate nas pálpebras e obriga os pedestres a fechar(em) os olhos, quase entra pela boca e depois diz ser poeira.

Ouço músicas clássicas próprias de enterro. Por vezes dou por mim a conversar com um mordomo qualquer, peço-o que me traga de volta entequeridos, já que o Senhor não me pode ofertar isto, uma legião de unicórnios em forma de carrossel faz brilhar minha visão ao canto da parede e ali as aranhas percebem que pegaram o caminho errado. A pomba branca só existe por sombras, pois na cabeça o positivismo é como as enxurradas na Petrangol. Eu queria muito não ser assim. A minha cabeça é o motivo pelo qual eu preciso de uma. Banhos consecutivos refrescaram o corpo, por pena não baixaram a temperatura da paranóia bradando no subconsciente. Invento histórias e acredito ser acidental, pois as mesmas histórias, quando lidas, ressuscitam memórias de uma cabeça degolada pelas próprias asneiras. Meu corpo já anda num saco e ninguém sabe disso. Tenho visões de minhas fotos a serem lançadas a uma lareira ou vários de mim a chorarem no meu óbito...

Toda a minha vida é uma encenação, um caminho para fugir desse terror, eu mesmo, o bicho que me atormenta toda hora, o diário enigmático que transpõe o meu nível de interpretação. Sou o diabo tirado do barro para a vida, que fez de tudo para que a sua costela fosse tragada pela serpente que temia rastejar. Sou o anjo caído em água, a terra me enjoa, e por mais que tente ser normal, o mal atrai meu estado de espírito e faz com que o anormal sare os meus feridos: meus sentimentos desumanos e minhas razões, uma vez que as emoções só as utilizo para amar a tristeza e ir ter em bares fechados com a falta de companhia.

Não é bem esse o terror. Ainda não encontrei palavras que me possibilitem exteriorizar com tino e impávido essa gruta onde me tenho confinado. Caí para lá quando escorreguei do berço da calma. O silêncio engoliu-me.

Widralino
Enviado por Widralino em 28/03/2018
Reeditado em 28/03/2018
Código do texto: T6292752
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.