Assim ou ...nem tanto.133

Constatação.

Um dia acordou velho. Achou estranha a luz e o estalar dos ossos quando, para chamar os músculos, se esticou. Sabia que seria assim mas pensou que, com boa memória, o que já se não vive pode recordar-se. O pior era as falhas, os lapsos, as falsas certezas que, como moscas, volteavam sobre a sua cabeça, invisíveis, insistentes, capazes daqueles sussurros onde já não se revia por inteiro. Rodou sobre o corpo, apontou os pés ao tapete e ergueu-se. A imagem ainda era, na penumbra, uma agradável nudez ao espelho. Coçou a cabeça de poucos pelos, desceu os dedos para a barba rebelde, viu o pescoço marcar, com riscos firmes, o meio incerto da glote. Afagou o peito e demorou-se no cabelo branco que rodeava a força dos mamilos, o recorte das costelas, o ventre liso e magro. Abaixo, pendia o sexo inexpressivo, amolecido, lugar que foi de tantas sortes hoje em quietude ausente. Dobrou a coxa esquerda e fez o quatro para testar o equilíbrio e afagou os dedos do pé. Mostrou-se de perfil, endireitou as costas, abriu exageradamente a boca e espreitou os dentes. Disse ahahahahah como poderia dizer outra coisa. Depois, sentiu a água do chuveiro misturar-se às lágrimas e ensaboou-se lentamente.- Estás bem? Era a mulher admirada da demora. Temia que caísse, que trocasse as casas da camisa, que aparecesse com roupa mal conjugada ou com peúgas diferentes. Não seria a primeira vez mas seria, seguramente, a primeira em que ele, agora velho, daria pela troca.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 27/03/2018
Código do texto: T6292320
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