Quem mudou, Lula ou a imprensa?

“QUARTA FEIRA, 1 DE JANEIRO DE 2003

O ESTADO DE SÃO PAULO

A mobilização da esperança

O torneiro mecânico Luiz inácio Lula da Silva chega hoje ao Palácio do Planalto depois dos 66 dias mais extraordinários que a história republicana há de ter registrado — a ponto de ofuscarem até mesmo o significado da formidável ascensão social do novo chefe do govemo. Reveladora de uma realidade cultural e política que justifica o perene otimismo dos brasileiros diante do futuro. Efetivamente. o que vem se passando no País desde o triunfo do candidato petista no segundo turno de 27 de outubro é uma combinação de acontecimentos que desafiariam a imaginação de qualquer ficcionista político. 0 culto a Lula, que começou ainda durante a campanha eleitoral. decerto é a dimensão mais ostensiva desse momento. mas não é o que o torna inédito. Outros líderes carismáticos já foram endeusados pelo povo antes ainda de terem a oportunidade de justificar, ou desmerecer. a consagração recebida, O que distingue o apoio de que passou a desfrutar o vitorioso que está empossado hoje — sobretudo entre aqueles que nao apenas nao sufragaram o seu nome. como finham procedentes motivos para rejeitá-lo — é algo raro e, no caso. paradoxal: uma forte carga de racionalidade.

É a resposta da opinião pública e das elites nacionais (no amplo sentido sociologista da expressão) aos atos e as palavras — também estes de uma racionalidade a toda prova — do presidente eleito e dos seus principais colaboradores durante a transição que acaba de se completar. Lula e as quadros dirigentes do PT. exibindo uma nunca antes revelada capacidade de olhar os fatos como são e não como gostariam que fossem e uma até a eleição insuspeitada disposição para agir de acordo com eles e não com os seus juízos prévios, estão conquistando a confianca daqueles que duvidavam de que teriam a custosa coragem de mudar.

A princípio. quando o então coordenador da transição. Antonio Palocci Filho, começou a dar lições de sensatez — como ao dizer. a maneira do seu agora antecessor na Fazenda, Pedro Malan, que “não há mágica" em matéria de gestão macroeconfimica responsável —, houve quem pensasse que ele seria antes a exceção do que a regra na equipe de Lula. Mas, com o passar dos dias, se percebeu inequivocamente que o govemo em formação operava sob o signo do realismo ao lidar com os desafios que o aguardam, arquivando, ja nao sem tempo. preconceitos tão anacrônicos como os slogans que os traduzem.

0 lúcido veto às propostas embrionárias de renegociação da dívida dos Estados. bem como a um salário mínimo que sufocaria ainda mais o Tesouro. foram as primeiras demonstrações da maturidade que seria reiterada na escolha de um ex-banqueiro internacional para o Banco Central (BC) e de dirigentes empresariais para os Ministérios da Agricultura e do

Desenvolvimento e, em especial, no compromisso reafirmado por Palocci. em Nova York. de não permitir a reindexação de pregos. salários e contratos e de manter os fundamentos da política econômica do governo Fernando Henrique.

Não menos alentadora — e decisiva para o mercado perder o medo do futuro ~ foi a constatação de que a ala radical do PT não poderá, caso queira, agir como uma espécie de quinta-coluna do seu pragmático governo. Nesse sentido. 0 episódio da senadora Heloisa Helena. que se insurgiu contra a indicação de Meirelles, foi exemplar fazendo valer a disciplina partidária, o presidente do PT, José Genoino proibiu a senadora de votar contra o nome indicado para o BC "A ninguém se nega voz no PT”, explicou. “Mas o vote no Congresso não pode afrontar uma decisão partidária." Essa é a disciplina que se espera que seja mantida. para evitar que o clima de otimismo e boa vontade que existe hoje seja ofuscado pelos rompantes da extrema esquerda do PT, um perigo para o qual alertamos no editorial de domingo.

O que aconteceu nesses 66 dias. em suma, foi a construção de uma convergência entre Lula e a sociedade — algo que nao estava implícito no resultado eleitoral. Mudança foi a palavra de ordem vitoriosa nas urnas ~ e 0 PT foi o primeiro a mudar, ao deixar a oposição para preparar-se para exercer o Poder. Adotando posições típicas do que há de mais moderno na esquerda mundial, o partido e a sua figura-símbolo foram ao encontro do consenso de que uma mudança da política econômica. tendo em vista a prioridade para o crescimento. é impossível sem um Estado saudável e solvente.

Desse modo, o pacto social a que aspira o novo presidente acabou por se materializar “avant la lettre”, como um desdobramento natural de fatos auspiciosos. no que toca ao que há de mais importante em jogo: o destino da economia. E desse pacto com a racionalidade — definido pelo novo ministro da Fazenda. Antonio Palocci. na parte final da densa e percuciente análise da situação brasileira lida sexta-feira na primeira reunião do novo Ministério — emerge o imenso, merecido crédito do confiança corn que Luiz inácio Lula da Silva assume o leme do País. Crédito de confiança que é o que o leva a dizer e repetir tantas vezes, que não tern o direito de errar. Não tern o direito de errar porque não terá uma oposição que o impeça de acertar.”

O artigo acima consta no acervo digital do jornal O Estado de São Paulo e está disponível na internet.

Ele é uma síntese de como Lula foi recebido para seu primeiro mandato e da esperança que o País tinha nele e é um convite para refletirmos sobre o Lula que assumiu o governo em 2003 e o que vemos nas ruas hoje. Parece a mesma pessoa?

Argonio de Alexandria
Enviado por Argonio de Alexandria em 23/03/2018
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