DIA DE CHUVA SOB A MARQUISE

Curitiba é assim, do nada o tempo fecha. A chuva cai e você se vê debaixo de uma marquise disputando o minguado espaço com outras pessoas.

Uma cotovelada de leve da madame loura de olhos azuis que segura o cachorrinho Yorkshire em uma das mãos. Um delicado “Me desculpe!” dela, entre lábios de batom vermelho vivo. Um “Não foi nada!” meu, seguido de um sorriso amarelo e volto a contemplar a chuva metralhar a calçada. Bonitona a coroa do cachorrinho, ainda da um caldo, pensei.

E a chuva continua. Cai impiedosamente sobre a cidade. Pequenos rios surgem ao lado dos meios-fios para abruptamente desaparecer nas bocas de lobo. Carregam consigo os papeis de bala, pacotes de salgadinho e bitucas de cigarro que os garis não venceram limpar. Me incomoda essa visão do lixo carregado pela água. Isso fere o ambientalista de quinze segundos que vive em mim.

Um chute no calcanhar me arranca do devaneio, mas não a tempo de descobrir o autor da façanha. Uma olhada para trás e todos parecem muito inocentes. Fazem cara de não fui eu ou simplesmente ignoram meu olhar fechado. Foi o cabeludo com camiseta do Sepultura pensei. Droga! Se meu irmão estivesse aqui e fosse capaz de ler pensamentos teria dito que eu escolhi o suspeito pela aparência. Tudo para ele é preconceito.

A situação piorou. O dia se tornou noite quando era apenas três da tarde. Obvio, permaneci ali plantado como se fora uma sequoia, não pela altura da árvore é claro nem por sua presença majestosa, mas, pelo absoluto estado de imobilidade. Cruzar os braços, ou por as mãos nos bolsos, implicaria esbarrar em alguém e invadir o seu pequeno quadrado de espaço.

O cabeludo desistiu da espera, pediu licença, empurrou a multidão e partiu com uma daquelas corridinhas absolutamente inúteis que as pessoas dão quando chove. Pensam tolamente que não vão se molhar. Essas corridinhas caem melhor para as mulheres. Elas fazem isso com graça e estilo. Até aprecio as corridinhas que as mulheres dão. Paro para olhar e me deleito. São fascinantes as mulheres e seus trejeitos. Já os homens, parecem sacos de batatas correndo e não há o que comentar.

É verdade que ultimamente algumas mulheres andam apresentando um comportamento masculinizado. Não vejo graça nisso. Prefiro o poder arrebatador da feminilidade na mulher. Outro dia, na rua, fui apertar a mão da amiga de uma amiga e por pouco não tive que correr para a clínica de fraturas. Meus dedos ficaram dormentes. Exageros à parte, quando me despedi delas, tomei o cuidado de não oferecer novamente a mão para o massacre.

Olhei para traz enquanto elas se distanciavam e tive a sensação de que minha amiga caminhava com o Van Diesel e não com uma colega, mas, parafraseando uma linha da canção Dom de Iludir do Caetano “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” e isso é o que importa.

Caramba! A chuva continua. Permaneço ali, imerso nesses pensamentos espalhafatosos, sorvendo o barulho dos pneus dos carros no asfalto molhado, uma buzinada abafada aqui outra ali, o tamborilar dos pingos no acrílico da marquise. Essas pequenas coisas que só o outono curitibano com seus dias escuros e chuvosos traz para você. A poesia do tempo. A poesia do clima. Não é para qualquer um. Exige uma sensibilidade extra não tratar toda essa cacofonia de sons como uma simples coleção de ruídos ordinários.

Fui interrompido novamente. Desta vez pela dona Arlete e sua amiga, a Francisca. Não as conheço pessoalmente, mas, passei a conhecê-las e partilhar de uma ínfima fração de suas vidas pelo teor da conversa, meio sussurrada, meio dita ao pé do ouvido, como fazem os curitibanos em meio a muita gente.

Fiquei sabendo que a dona Arlete tem uma irmã chamada Noêmia e no apartamento da patroa da Noêmia tem dois gatos brancos, enormes e muito peludos e que são a razão da constante crise de renite da pobre Noêmia. Soube também que os gatos chamam-se Nicolau e Sarita.

Entre o barulho da chuva e os “sabe Francisca” e os “Arlete você nem imagina quem está isto ou quem fez aquilo” soube um monte de coisas de gente que jamais vi ou que jamais verei na vida.

A chuva enfim amainou, e estabilizou-se em um chuvisco. Os espaços sob a marquise foram se ampliando. Cada um foi tomando seu rumo sem despedidas, sem um tchau ou até breve, completamente desconhecidos, como quando se uniram ao abrigo do tempo.

Fantástico pensar que poderia ter acontecido o contrário. Essa união súbita entre pessoas que jamais se cruzaram, poderia ter criado relações para toda uma vida, quem sabe amizades, quem sabe amores.

Também tomo meu rumo, agora sob a garoa, com a certeza de que no pequeno universo desta cidade, com cerca de dois milhões de pessoas, uma loura de olhos azuis sai todos os dias a passear com o cachorro. Há um cabeludo que é fã do Sepultura, uma Francisca e uma Arlete que são amigas. Uma Noêmia que sofre de renite por causa de dois gatos com nomes engraçados.

Personagens reais que compõem a massa dos que habitam essa cidade e a quem eu talvez jamais reencontre ou ouça falar novamente nesta vida...