O circo

(1982) O CIRCO

Estávamos observando ansiosamente toda a movimentação. Eu (Florzinha) com 7, meus irmãos (Fernanda com 6 e JJ com 4 anos) e o Bob, nosso cachorro vira-lata. Era meio que engraçado porque o circo havia estacionado bem ali, em frente a nossa humilde casa, num terreno baldio. Corremos imediatamente para o muro, pois sabíamos que lá no circo existiam palhaços e alguns animais ferozes capazes de devorar criancinhas como nós. Rodeamos a casa, eu na frente guiando os demais. Entramos pelo beco e ajudei-os a subirem no muro, pois de lá dava pra ver bem direitinho todo o trabalho. Pessoas colocando estacas, puxando lonas e gritando uns com os outros. Uma completa loucura. Ficamos ali por horas e nem percebemos que a hora do lanche havia passado. Escutamos a voz da nossa mãe a gritar por nós, e num impulso pulei do muro em seguida retirei meus irmãos e fomos correndo antes que ela visse o que estávamos fazendo. Porém, na entrada do beco, lá estava ela com um pedaço de corda nas mãos, irada com o nosso sumiço.

- Posso saber o que vocês estão aprontando dessa vez? Ou melhor, o que você, dona Florzinha, como sempre, influencia os seus irmãos a fazerem? Diga-me logo!

Esta é a minha mãe, sempre que eu fazia algo que a desagradava, ela resolvia usar a violência. Achava que era a única forma de resolver as coisas.

- Mãe, a senhora viu que tem um circo parado bem ali do outro lado, no terreno baldio? Estávamos olhando um pouco. Só isso! – Falei tentando convencê-la de que não estávamos fazendo nada demais.

E bastou eu me calar para sentir a cipoada da corda em minhas costas. A explicação não serviu. Apanhei por ser a mais velha e induzir meus irmãos menores ao erro. Sempre foi assim, tudo era eu a culpada. Fiquei de castigo e com uma marca de corda nas costas. Mas a vontade de ir ao circo não passava. Estava decidido, iria pedir ao nosso pai para irmos. Ele com certeza iria deixar.

Não a culpo pela sua ignorância, minha mãe era uma mulher sofrida. Vivia ocupada com os afazeres domésticos e na obrigação de cuidar dos três filhos em tempo integral, enquanto meu pai, viva passando o dia todo fora trabalhando como motorista de táxi e flertando com algumas mulheres, digo isto porque apesar da minha pouca idade sabia exatamente o motivo das brigas e discussões entre eles, dia após dia. Como pai, quando chegava do trabalho, era aquela festa entre os filhos. João Jacob (JJ) vibrava de alegria quando ele o colocava nos braços e rodopiava até a exaustão. Eu e minha irmã não ficávamos de fora, fazia questão de correr atrás de nós com brincadeiras. Ríamos bastante.

Quando ele chegou a noite, cansado do trabalho, fui logo atrás dele com a intenção de persuadi-lo a deixar nossa mãe a levar-nos ao circo Azul. Cheguei de mansinho, os meus irmãos vinham atrás. Ele estava à mesa, o jantar havia sido servido: frango, arroz e batatas. Ficamos ao redor dele, esperando a oportunidade para falar a respeito. Como nunca foi bobo, percebeu nossa inquietação e sorrindo perguntou:

- Vamos lá, o que vocês querem, hem? Não se acanhem. Sei que estão querendo alguma coisa de mim. Venham, aproximem-se mais minhas crianças! Falou todo sorridente.

- Painho, o senhor viu o circo lá fora, do outro lado da rua, no terreno? Nós queríamos tanto ir. Sabe, ficamos ali no muro a tarde toda vendo os homens levantar a lona azul, enquanto que os animais eram colocados em jaulas maiores. Nunca tínhamos visto um circo assim tão de pertinho, e ainda por cima, nunca fomos a um. Deve ser muito divertido. O senhor deixa a Mainha levar a gente? - Falei com tanta pressa, que quase fiquei sem ar. Ele demorou alguns segundos para responder. Ficou a me olhar, e por fim, respondeu.

- Sabe filha, quando eu era um garotinho assim como vocês, morava na roça e ajudava seu avô a cuidar da lavoura de milho. A minha diversão era brincar com um cabo de vassoura como se fosse um cavaleiro pronto para espantar a boiada. Colocava uma panela na cabeça e corria montado fingindo ser um vaqueiro. Bons tempos aqueles. Um dia em nossa pequena cidade do interior da Paraíba chamada Pilar, chegou um trem de carga todo colorido, e dentro dele saíram homens carregando animais e uma lona gigantesca. Ficamos assustados, pois nunca havia acontecido tanta movimentação assim na cidade. Meu pai foi lá ver o que era e chegou no sítio dizendo que havia um circo na cidade. Eu não sabia o que era um circo. Aperreei meu pai para ver como era esse tal de circo. – Respirou fundo, e continuou a narrativa. – Fomos, eu e o vô , todos arrumadinhos para o circo. Quando chegamos lá, meus olhos não acreditaram no que viam. Uma lona listrada enorme. Fomos adiante e quando entrei fiquei completamente paralisado e com medo. Um homem todo pintado fazia as pessoas rirem, enquanto outro cuspia fogo da boca. Apertei as mãos do vô e ele disse-me “tudo bem filho”.

Eu e meus irmãos não tirávamos os olhos dele e de como contava esse fato emocionado. Mas, ainda não disse se poderíamos ir. Olhou para nós, e continuou.

- Estou contando para vocês o que me aconteceu quando fui a primeira vez a um circo. Mas creio que já devem saber o que há de encontrar lá dentro. Não tenham medo crianças, aproveitem o tempo e divirtam-se.

Pulamos imediatamente em seu pescoço, todos ao mesmo tempo. Mainha entrou e ficou curiosa para saber o porquê de estarmos tão contentes. Nosso pai então falou e, apesar de ela não ter aprovado a decisão do pai, achou melhor acatar o que o marido decidira.

- Vamos então, mas com uma condição. – Indagou bem séria. - Irão tomar banho no horário certo e fazer as tarefas de casa sem que eu reclame.

- Há mãe, fala sério! Golpe baixo, sabia? Disse toda tristonha.

- Ou isso, ou nada de circo! Finalizou a questão.

E assim ocorreu. Como ainda era sexta, fizemos tudo conforme estabelecido, para que no domingo fossemos felizes para o Circo “Azul”. Mainha ficou toda satisfeita.

Domingo chegou, com um céu radiante e brilhante. Acordei cedo e passei a manhã imaginando como seria quando chegássemos lá dentro. Ah, estava tudo perfeito. Iríamos na sessão das 15h. Estávamos ansiosos, arrumadinhos esperando apenas a ordem da nossa mãe. Faltavam 15 minutos para o início. Ouvimos nossa mãe chamar. E finalmente seguimos rumo a alegria. Tínhamos que atravessar a rua e andar mais uns 50 metros para avistarmos a entrada do circo. JJ segurava a mão de Mainha, eu e a Fernanda, estávamos logo atrás. De repente, escutei os gritos da nossa mãe. Foi tudo muito rápido. Meu irmãozinho estava estirado ao chão, no meio da rua, com sangue saindo da testa. Ele tinha apenas 4 anos. Por ter os pés tortos, tropeçou e caiu com a testa no asfalto. A coitada de Mainha não sabia o que fazer tamanho era o desespero de ver o seu filho caçula naquele estado. Começou a juntar gente. As pessoas queriam saber o motivo do tumulto em frente ao circo. Aproximei-me dele e involuntariamente, tirei meu casaquinho novinho e coloquei na testa do meu irmão, na esperança de estancar o sangue. Um homem muito alto e forte aproximou-se de nós, “afastem-se”, gritou. Pegou a criança nos braços e levou-a para um carro. Fomos atrás dele.

Em plena tarde de domingo, estávamos lá, eu e minha irmã, no Pronto Socorro esperando nosso irmãozinho sair de uma sala junto com minha mãe. Ele precisou levar 8 pontos na testa. Nosso plano de irmos ao circo acabou virando uma tarde no hospital. Apesar de tudo, a minha esperança não tinha se acabado. Na manhã seguinte, ao acordar, corri para o beco e quando subi no muro, vi apenas um terreno baldio, sem nenhum vestígio do circo que há alguns dias estava ali.

DÉBORA ORIENTE

Debora Oriente
Enviado por Debora Oriente em 20/03/2018
Reeditado em 22/07/2024
Código do texto: T6285666
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