Intelecto aleijado
Enfim, o trem chegou na estação. Aconteceu a disputa pelos assentos. A regra era deixar saírem para depois entrarem, mas, ninguém seguia. O tumulto só se desfez depois que sentar já não era mais possível.
Um homem rústico, de meia idade, trajando calça de brim e sapato de chuva, carregando uma bolsa de transporte, cheia de ferramentas para serem usadas em uma obra, fora o último a entrar em um dos vagões. Não teve ele habilidade para enfrentar a multidão de usuários na passagem da porta. Viu um assento azul vazio, correu para ele e, se sentindo esperto, se acomodou ao lado de uma velhinha. Pareceu não saber que o banco só estava vazio porque as pessoas o evitaram, já sabendo que tão logo chegasse o trem na estação seguinte elas o teriam que desocupar.
Um minuto e meio após a arrancada no terminal e o trem parou novamente. Mais passageiros entraram e saíram. Menos tumulto ocorreu. Uma senhora, de setenta para oitenta anos de idade, se sustentando com uma muleta do tipo bengala, foi em direção ao homem rústico e esperou que ele lhe oferecesse o assento. Este, exibindo um ar de quem se acha afrontado por ter sido escolhido para dar o lugar, não admitiu cedê-lo. A velhota ficou sem entender.
Alguns passageiros, considerando ser um disparate o procedimento do homem, exigiu que ele liberasse o banco para ser ocupado por quem era de direito. Chegaram a esclarecer para ele sobre a razão da prioridade da senhora, mas, ele, defendendo seu posto, mostrando haver em outros bancos pessoas mais novas do que ele e com semblante menos cansado, alguns provavelmente indo a se divertir no centro da cidade, deixou claro que não haveria de ser ele a dar o lugar que conquistou com suor.
Foi quando uma mulher pediu para que o homem lesse o cartaz que estava logo acima da cabeça dele. Ele virou um pouco o pescoço e o espichou para olhar o que era lhe direcionado. Depois disso, ele se reposicionou, olhou para o vazio como a tomar uma decisão e decidiu que era melhor fazer o que pediam. Ia desgastar-se menos e era ele um homem forte, podia muito bem ficar em pé o tempo que faltava para ele chegar até seu destino, que ele próprio sabia que ia ter que contar com a boa vontade dos passageiros ao seu redor, pois, não se atinava quanto à ordem que estava a estação que iria descer. Ele só sabia que deveria contar treze estações a partir da que iniciara a viagem.
A velha deficiente motora acomodou-se no banco e todos ficaram em paz. Mas não sem terem feito mal julgamento do rapaz, que aparentemente queria cabular a prioridade da velha. Os mais absurdados ainda faziam comentários em tom indireto e em assobio. O trem fez mais uma parada e todos torceram para que o ranzinza deixasse o vagão. O estavam repugnando.
Nisso, tendo perdido a conta por causa da pressão psicológica que sofria devido ao incidente, o pedreiro se viu impulsionado a perguntar o nome da estação prestes a passar por embarque e desembarque. A irregularidade dos motorneiros, que ora falavam o nome da próxima parada e ora não, o tirou essa possibilidade de se informar. Foi ele, então, perguntar para a plateia ao redor se aquela era a Estação Lagoinha.
Ouviu ele dos passageiros revoltados: "Ué, leia na placa o nome da estação; não quis ler o cartaz sobre a prioridade de assentos e quer que a gente te informe onde você vai descer". E se viu obrigado a revelar que era analfabeto e que estava informado de que deveria descer na décima terceira estação a partir da que entrou e que a bagunça para ele ceder seu lugar o fez desconsertar-se.
A velhota que recebeu o lugar devido, comovida com o ensejo e se sentindo na obrigação de reparar o impasse, deu seguramente a informação para o homem. Ele agradeceu com um sorriso humilde, tirou do chão sua bolsa e saltou do vagão. Chamando de vovó a velha, os passageiros que protagonizaram o incidente a repreendeu. Achavam que ela deveria tê-lo feito descer duas ou três estações além para ele deixar de ser bobo. E os mesmos ouviram dela: "Para que, meus jovens, a deficiência dele é maior do que a minha".
"O homem que não lê bons livros não tem vantagem nenhuma sobre o homem que não sabe ler" (Peter Drucker)
*Leia o livro "Todo o mundo quer me amar" de A.A.Vítor.