Um médico
Hoje vi um médico falando ao celular no shopping. Sei que era médico porque usava um estetoscópio ao pescoço apesar das roupas comuns. Caminhava para lá e para cá, falava alto, parecia importar-se em se fazer notar com os garranchos verbais no telefone enquanto ajeitava o colar de sons corporais.
Hoje vi um médico no restaurante do centro. Sei que era médico porque usava o jaleco branco e os sapatos brancos de médico; e a pulseira de couro do relógio também era branca. Tinha por trás dos óculos as pupilas inquietas a pular por sobre a armação e perscrutar as mesas vizinhas como se checasse se alguém precisava de um médico para esses males que a toda hora acometem mulheres e homens em restaurantes.
Hoje vi um médico na academia. Sei que era médico porque usava uma camisa de futebol universitário e no local onde encontramos, no esporte profissional, a legenda dos patrocinadores do time, lia-se em letras garrafais: MEDICINA. O peito estufado e a voz forte entre colegas, que cuidavam da saúde de seus corpos, traziam a atenção de todos para a mensagem no uniforme. Felizmente ninguém enfartou na esteira ou vomitou fazendo abdominal, mas o médico estava ali. Fazia-se notar.
Hoje li um relato pessoal nas redes sociais. Alguém levara a mãe ao posto de saúde, mas não vira médico algum. A consulta, marcada havia meses, fora reagendada e o médico que a atendera depois mal olhara para ela, apenas recomendara soro e um remédio para virose. A mulher tinha câncer e morreu há poucos dias, segundo o relato do filho. Eu não sei explicar ao certo qual o problema da saúde no Brasil; não sei se existe um grave despropósito tanto nos hospitais particulares, muitos dos quais tratam a saúde com o perigoso viés do lucro, quanto nos hospitais públicos onde quando não faltam médicos, falta o atendimento. Não quero julgar toda uma classe a partir de três ou quatro observações, mas a mulher precisou de alguém que a olhasse e cuidasse de uma dor que a incomodava. E não houve por perto nem um médico que se fizesse notar.