A CIDADE VIROU MAR
A CIDADE VIROU MAR
Pleonasticamente digo: enchente enche! Seja para quem perde tudo água abaixo ou para quem fica ilhado sob uma marquise, driblando os pingos de chuva. Sempre há motivo para lamentar. Tanto por aquele que precisa de sete pra inteirar meia dúzia como também por quem chora de barriga cheia. Mas, contrariando o ditado, nem sempre quem está na chuva é para se molhar. Às vezes você entra na chuva sem um pingo de arrependimento de ter entrado.
Foi o que se deu com Nonô... ali pelos lados da Praça Zacarias, onde as enchentes eram recorrentes. Bastava o céu ficar meio cebruno, como dizem os pampianos dos pagos gaúchos, para árabes e judeus recolherem os manequins com feições de cerâmica para dentro das lojas, suspenderem as araras com vestidos para o sótão e calçarem galochas, arregaçando as calças. Nuvens com tom acinzentado eram prenúncios das águas dos rios da Bacia do Belém saindo da caixa e se derramando pelas ruas centrais de Curitiba. O Ivo era o manancial mais temido: por ser também o escoamento das correntezas pluviais descendo do Batel, São Francisco, Bigorrilho...
Pois bem, foi esse cenário o Rio Jordão de Nonô. Ali teve seu batismo para enfrentar as alternâncias de prazer, dor, alegria e tristeza que a boemia iria lhe oferecer vida afora.
Chegara à cidade há poucos meses. Já ultrapassara aquela fase em que o novo morador, vindo do interior, estabelece pontos de referência para reencontrar sua casa após passeio mais afastado. As suas referências eram a Catedral e o Lord Hotel. Podia ver, de longe, as torres e o prédio que se destacavam na paisagem da Praça Tiradentes, o ponto mais elevado na topografia da área central e vizinho de seu aconchego.
Morava num “pombal” (pensão de estudantes) na Mateus Leme. Do colega de quarto ganhou convite para o baile organizado por meninas-balconistas de lojas centrais: lá na Sociedade Duque de Caxias, na esquina da Doutor Muricy com José Loureiro.
Início da noite de sábado, já estava todo pimpão preparado para seu debut nos salões curitibanos. Sapatos de sola e salto de couro, perfume discreto para um lance de rosto colado e umas pílulas prateadas de Jintan para refrescar o hálito prejudicado pela mistura bebida/cigarro. Vendo o tempo nublado, apressou o passo para chegar antes da chuva. Levou sorte. Foi entrar no clube e logo despencou água.
O salão tinha uma espécie de frisa, onde a rapaziada ficava de olho nas meninas. Pediu um cuba e foi lá para cima para ver o Who is Who da noite. Sem saber o quem é quem não há estratégia – foi uma lição que aprendeu já nos primeiros passos nos bailes da vida.
Solito, cuba numa das mãos e o cigarro na outra, ficou ali encostado numa coluna, fazendo pose de Humphrey Bogart e trazendo na ponta da língua a frase do astro em Casablanca: “Não costumo fazer planos em longo prazo”. Vai que numa dessas a moça larga um “vou pensar”...
De camisa de listras vermelha e pretas, discreta mas marcante, curtia o baile e o barulho da chuva lá fora... Só faltou o trecho da música “Acertei no milhar”, “mas de repente, derrepenquente”, a lâmpada apagou, a vista escureceu e a música parou. Zum zum zum no salão e Nonô encolhido em copas no seu canto... Só de “piciné”. Voltou a luz, ou melhor, um lusco-fusco. Percebeu aí a aproximação do grupo com os dedos apontados e a voz estridente: “foi ele, foi ele, sim, foi ele quem passou a mão em mim”. O que parecia ser paródia da marcha carnavalesca representava ali grave acusação. Os quatro ou cinco, embalados pelo álcool, tinham ares de turba. Cuméquié... e daí, cara... explica aí, palhaço.... Nonô sentiu a barra pesada e na base do num sei de nada, péra aí... num tenho nada com isso... iniciava sua carreira de argumentador. A tensão crescendo, o batalhão de querubins compondo a turma do deixa-disso, enviada pelo anjo da guarda, e Nonô passando pelas sete cores do arco-íris, chegando a lividez do branco. Mas, se a turma do calma, calma, rapaziada não estava dando conta, o próprio anjo da guarda resolveu intervir. E chegou travestido de apresentador de telejornal do incipiente canal de TV da cidade.
Reonhecido por todos, entrou na conversa protegido pela sua aura de personalidade. Assumiu a defesa de Nonô, garantiu que ele estava quieto ali em seu canto e, por fim, colocou ordem no terreiro. Após os mais sinceros agradecimentos, nosso amigo circulou um pouquinho pelo salão, sempre com um olho no gato e outro na sardinha. De rabo de olho viu que as suspeitas continuavam. Lá fora, a chuva já era garoa. Não pensou duas vezes para ir embora, sem dar chance para o azar. Desceu e quando olhou para fora viu a cidade virar mar. Como crente a seguir o beato, não recuou e seguiu o conselho: cai fora!
Ergueu as barras da calça até o joelhos, amarrou os sapatos pelos cadarços um ao outro e os jogou ao ombro, guardando as meias no bolso. Sem reclamar da água gelada tocou em frente entoando seu mantra: como dizia Jesus da Galiléia, malandro que é malandro não bobéia!
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