EU VEJO O MUNDO

Como de costume, ele acordou pela manhã bem cedo, pronto para mais um dia do seu mundinho perfeito. Levantou-se, pegou a toalha e trancou-se no banheiro. De fora se escutava o “chuar” da água caindo sobre o corpo que saciava o desejo de ficar sempre limpo e cheiroso. Não demorou muito para que a porta se abrisse e de lá saísse ele, cabelo penteado, barba bem feita, corpo perfumado e bem vestido, cintilando um brilho estonteante, embora não tivesse a noção de quão bonito era.

Sentou-se à mesa, colocou na chícara de porcelana o preto café, cujo aroma fresco invadia a casa. Cortou o pão, passou a menteiga, um pouco de ovos mexidos, recusou o açucar, por questão de gosto e deleitou a refeição matinal com muito gosto.

O sol brilhava lá fora. Era um dia lindo, mas muito quente, aliás cada dia que passava o tempo muito mais quente ficava. Se era verão? Talvez fosse, não importa, porque estava quente mesmo. Sair de casa era para ele um exercício diuturno, uma constante experiência em busca da leitura de um mundo apagado e escondido e que na melhor das hipóteses sempre pudera por ele ser sentido.

De fato o calor abafava a terra. Por vezes pôde ouvir notícias de guerra. Pôde sentir o odor e respirar a poluição, e, perceber o descaso da maior parte da população. Um grito de desespero também pôde escutar, de alguém que implorava por socorro, ao som dos passos que corriam para o morro. Teria sido um roubo, um estupro, um assassinato ou outro crime qualquer? Era grito de homem ou de mulher? Nada disso mais importa, diante do corpo esparramado. A marca e a dor no peito já se tinham consumado.

E ele continuou. Uma criança o abordou e pediu esmola. – Onde moras meu filho? Onde estão seus pais e por que não estás na escola? – Não te importa não senhor. É só uma criança sem valor. Uma criança de rua como tantas outras que adiante irás encontrar. Vivendo a luz da lua, sem nenhuma manta ou cama para deitar.

Mais uma vez a marca e a dor no peito se fazia presente, mas agora era no seu próprio peito, marcado pelo desdém de alguém, ainda que desconhecido, não imaginava escutar.

O que acontecera com o amor? Foi a pergunta que ele a si fez. É a isso que se dá o nome de maldade, pervesidade, incredulidade, incompreensão, desamor e tantas outros substantivos que nem deveriam existir em nosso dicionário?

Ele entristeceu, neste momento acredito que uma lágrima surgiou por detrás dos óculos escuros e rolou pelo rosto pálido. Foi exatamente neste momento que ele chorou. Chorou baixinho, chorou para sí, chorou de verdade. Foi neste momento que sua voz ecoou forte, num momento de desespero e de piedade. Tirou os óculos escuros, deixou cair a bengala, levantou as mãos para o alto e dele se pôde escutar:

“Posso sentir, falar e ouvir, mas não vejo sequer a cor da palmeira. Tenho medo de algum dia poder enxergar e preferir de vez a cegueira”.

Paulo Roberto Fernandes
Enviado por Paulo Roberto Fernandes em 16/03/2018
Código do texto: T6281134
Classificação de conteúdo: seguro