CRÔNICA DA CRÔNICA
 
      Imagino que nós, candidatos a cronistas, buscamos inspiração como o faz a maioria: por óbvio, no cotidiano das pessoas. Eu estava nesta situação. Precisava inspirar-me para um novo texto e resolvi dar uma volta por alguns prováveis locais. No caminho me lembrei de um dos mais geniais cronistas do início do século passado chamado João do Rio, que também foi jornalista, tradutor e dramaturgo. João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto era tão apaixonado pelo Rio de Janeiro que formou seu pseudônimo estendendo-o com a expressão “do Rio”. Descreveu cronicamente sua cidade como nenhum outro. Era dono de tiradas cuidadosas, porém inteligentes e de um humor soberbo. Pois é! Eu aqui, esmiuçando esse gênio, falecido precocemente por infarto aos 39 anos, e a minha pretensa crônica continua com má vontade. O João era demais. Andava pelas ruas que ele descrevia como se fossem vivas. Dizia que uma rua dormia e acordava. Coisas e objetos eram seres animados. Assim nascia o seu trabalho de cronista.
         Numa tola e infrutífera tentativa de imitar este mestre (quanta pretensão, meu Deus!) fui observando, bem no centro da cidade, o tal cotidiano de algumas pessoas e suas coisas. Eis que vejo uma mocinha sentada no chão da praça tocando lindamente seu violão, acompanhado de uma voz impecável. A cumbuca de contribuições, bem ao lado, estava vazia e comecei a notar certo cansaço na voz da cantora. É! Não estava fácil para ninguém! Logo eu ouvi uma discussão desagradável entre um motorista e um lavador de carros. O veículo havia sido lavado sem autorização do dono. A esposa do motorista, que estava como condutora, fazia compras numa loja próxima. O marido fora chamado e achou que o lavador se aproveitara da situação. Do outro lado da avenida já se via um vendedor de utensílios domésticos para panelas. Gritava como ninguém, anunciando que, cientificamente, pela medida, suas conchas, colheres e garfos garantiam uma dieta ideal. Com dúvidas sobre tão estranha promessa deparei-me, bem ao lado, com um senhor de longas barbas, misticamente paramentado e que prometia solucionar problemas sentimentais de toda monta. Disputava sua quiromancia com algumas ciganas logo mais à frente. Um vendedor de celulares e acessórios também aparecia naquele meio e, sob alguns olhares desconfiados, oferecia seus aparelhos com os “melhores preços da concorrência”. Por sua vez, um grupo de senhores, possivelmente aposentados, se debatia verbalmente com as últimas notícias sobre a política do país. O cardápio era enorme. Bastava um olhar mais acurado para eu ver um sem número de cenas inusitadas, mas, sobretudo, muito interessantes. Enquanto pensava nisso, acabei escutando o barulho de um vidro se quebrando. Esta foi, talvez, a cena mais lamentável do dia, acontecida na pastelaria da esquina. Um vidro frontal protegia a panela elétrica e funcionava como uma vitrine para o apetitoso produto em processo de fritura. Inesperadamente ele se quebrou ao meio, vindo cair pedaços dentro do óleo e outros na calçada. Felizmente ninguém se feriu, mas restou aos proprietários a difícil tarefa de sanear o local e recuperar a credibilidade do seu produto. Era fundamental garantir a integridade física dos consumidores quanto aos perigosos cacos que haviam caído dentro do óleo fervente.
       Pois bem! Ali estava eu, talvez um registrador de cenas e sonhos, buscando inspiração para mais uma crônica que insistia em não se concretizar.
      Decidi ficar por aqui, nestas linhas, prometendo, num outro dia, concluir este texto. O João do Rio, com muito menos, se sairia brilhantemente nesta senda. Hoje sou mais velho do que ele, quando deixou este mundo e espero ter mais tempo para continuar tentando. Que Deus me ajude!
Luciano Abreu
Enviado por Luciano Abreu em 09/03/2018
Reeditado em 13/03/2018
Código do texto: T6274961
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.