A CHAVE DE DANÚBIA
Conheci-a numa esquina da antiga Boca do Lixo, em São Paulo, antes de existir a Cracolândia. Era o caminho entre o meu trabalho e a estação de metrô da Luz. Chamou-me a atenção, de imediato, seu porte de nobreza: olhos azuis profundos, cabelos loiros, pele clara, já meio encardida, e ossatura bem aprumada, denunciando um perfil longilíneo, embora a visse sempre sentada. Devia ter 25 anos. As roupas, apesar de sujas e já um tanto puídas, eram de boa qualidade. Sentada, mantinha uma postura algo altiva, destoando da sua condição de moradora de rua.
Desde o dia em que a notei (não sei quando passara a ocupar aquele lugar), interessei-me por observá-la, nas minhas passagens. Um dia, cumprimentei-a. Ela sorriu, mas nada disse. Nos três dias seguintes, a mesma coisa. Concluí que devia ser muda. Essa suposta mudez não me permitia saber-lhe o nome. De modo que a batizei Danúbia, por causa dos seus olhos, da cor daquele rio europeu.
Certa manhã, ao passar, vi que ela comia um pedaço de pão velho, a seco. Na volta, trouxe-lhe um bom sanduíche, acompanhado de uma latinha de suco de fruta. Agradeceu-me com o olhar e com gestos que diziam que eu não precisava me incomodar.
A partir de então, valendo-me do fato de que ela ouvia, passei a fazer-lhe perguntas. A algumas, ela respondia com gestos bastante esclarecedores; com outras, era algo reticente. Mas havia perguntas às quais não dava a mínima resposta. Danúbia era um mistério para o qual eu precisava encontrar a chave.
Numa sexta-feira, enquanto viajava no metrô, formulei algumas perguntas que acreditava me ajudariam a desvendá-la. Mas, quando cheguei à esquina de Danúbia, ela não estava lá. Perguntei a um camelô que trabalhava próximo e ele me disse que parentes dela, gente com cara de ricos, de Santa Catarina, a haviam levado de volta à sua terra. Que ela estivera desaparecida e eles finalmente a haviam encontrado. E nada mais soube dizer-me o camelô. De forma que, para mim, o mistério Danúbia continua.