As mendigas e o caso do incêncio
O último poste da Rua da Vargem ficava a uns 30 metros de nossa casa, eram de eucalipto os postes da CEMIG chegada de pouco à cidade, a gente gostava de encostar o ouvido a eles para escutar um contínuo e misterioso zumbido cuja procedência os moleques que se julgavam espertos apenas especulavam. À noite quando as luzes se acendiam era enorme o numero de insetos alados ao redor das lâmpadas e o gramado molhado de sereno ao pé do poste tornava-se o cenário de uma festa “batraquiana”, que o ribeirão próximo alimentava brejos propícios à proliferação da saparia.
Um bambuzal, de inexplicável aspecto doentio, de bambus gigantes muito retorcidos, mas de um amarelo vivo com riscos verdes longitudinais, se interpunha entre aquela fonte de luz elétrica e a nossa casa, apenas deixando passar por entre o desfolhado de certos pontos uns escassos raios que curiosamente conseguiam entrar pela janela do lado leste e projetar arabescos na parede caiada que o vento dava vida na medida em que balançava os bambus lá fora. Era uma imagem que mexia com minha imaginação de criança.
Éramos pessoas tristes e nossa casa muito sem vida. Não conhecíamos festa. Meus pais viviam para o trabalho e qualquer resquício de alegria que houvessem tido na juventude apenas afloravam em lampejos breves nas raras conversas do casal. Tanto assim que uma visita, por mais inconveniente que fosse para os demais, representava para o menino que fui aos oito anos, uma quebra de rotina, que pelo menos me possibilitava ir para a cama um pouco mais tarde. Era assim com as mendigas.
Os nativos mais velhos hão de lembrar-se de algumas senhoras da vizinha Pitangui que vinham regularmente esmolar na cidade. Duas delas costumavam pernoitar em nossa casa. Minha mãe dividia com as desconhecidas as nossas precariedades e estendia um velho colchão na sala exígua. Naquela noite de sexta-feira, depois da sopa de cará, elas abordaram o assunto do incêndio. Diferentemente de nós, deviam ter acesso aos aparelhos de televisão, pois narraram cenas que eu veria anos mais tarde, do edifício Joelma em São Paulo, cuja construção havia sido concluída havia apenas dois anos, fora imediatamente alugado a um banco. No começo daquele ano de 1974 a empresa ainda terminava a transferência de seus departamentos, quando no dia 1º de fevereiro, às 8h45 daquela chuvosa sexta-feira um curto-circuito em um aparelho de ar condicionado no décimo segundo andar dera início ao incêndio que rapidamente se espalhara pelos demais pavimentos.
Quando se é criança as desgraças impressionam demasiadamente. As narrativas das duas senhoras permaneceram por dias e noites intermináveis em minha lembrança. Contaram que em quinze minutos após o curto-circuito já era impossível descer as escadas, que foram bloqueadas pelo fogo e a fumaça. Os corredores, por sua vez, eram estreitos. Na ausência de uma escada de incêndio, muitas pessoas ainda conseguiram se salvar contrariando as normas básicas e descer pelos elevadores, mas estes também logo deixaram de funcionar.
Contaram que uma mãe havia saltado para a morte, do décimo quinto andar com uma criança de um ano e meio nos braços. A multidão havia acompanhado o salto bem em frente ao prédio. O choro da criança havia sido ouvido logo após o impacto da queda. Que no último andar, um rapaz havia se jogado ao chão e arrastando-se, aproximado da borda do terraço. Mas uma labareda fez com que ele escorregasse e ficasse suspenso no ar, segurando no parapeito até não mais aguentar e despencar na rua.
Na parede branca de cal, as sombras do bambuzal tinham agora qualquer coisa de fantasmagórico, desmaiadas como estavam, pela fraca luz da lamparina.