Pequena crônica das Crias dos Zarco
Fábio Costa
E quem não é dos Zarco (explico para desfazer as dúvidas: Arcos é uma cidade do Centro-Oeste Mineiro, apelidada de Bodoque ou simplesmente, Zarco) sente como se fosse. Essa cidade abraça seus munícipes com alegria e pura filiação. Assim aconteceu comigo. Cheguei aqui em 1986, aos 8 anos de idade. Somado ao novo deste lugar que se instaurava, seguia assustado, ouvindo meus pais conversando sobre a morte de Tancredo e a possibilidade de uma “guerra”. Aquelas palavras marcaram minha infância e chegada nestas terras.
Ali na Vila Boa Vista nos instalamos. A escola foi um locus de aprendizado. O bairro um charme. Fiz grandes amizades. Até meus óculos eu perdi na enxurrada que descia caudalosa no morro da vila. Quando cheguei em casa e contei foi uma surra só.
Dali mudamos para a Rua Vereador João Veloso onde me encantava o caminhão do seu Zé na esquina. Uma máquina velha encostada com uma carroceria esburacada. Ele servia de palco para encenar a vida que eu queria. Fazíamos teatro para nossos pais. Sabe? Sempre sonhei em ser ator. Talvez fosse comediante, mas a vida me lançou noutra direção e reprimi muito do humor que havia em mim. Enfim, foi preciso crescer para compreender que nem sempre se é o que se deseja, mas nos encaixamos na dinâmica da existência. Outra memória que trago do tempo vivido nessa rua era as brincadeiras de fim de tarde entre elas a amarelinha proibida de ser pulada no tempo da quaresma. As cadeiras de trança colocadas nas calçadas para a prosa dos adultos. Recordo minha mãe utilizando o pente fino para nos proteger dos piolhos. Ainda sinto a dor no couro cabeludo.
Da Vereador João Veloso fomos para o bairro Esplanada. Ah, quanta alegria. Parecia roça. Não tinha nada. Enquanto meu pai construía a nossa casa, recordo da árvore no meio do pasto. Subia nela e ficava mentalizando a casa pronta e dizendo a mim mesmo: “daqui uns dias não poderei ver o lado de lá”. A casa ficou pronta e acolheu nossa família, imperfeita, mas desenhada por Deus para viver uma grande história. Lembro-me do campinho, da trave de gol assassina (minha mãe gritava: “sai de perto dessa trave menino – ela cai e te mata”). Lembro-me dos cavalos e do coice que levei ao voltar pra casa. Fui arremessado por debaixo da cerca de arame farpado. As idas para a Escola do Maricota de bicicleta e do redemoinho de vento que me lançou longe quando eu atravessava o campo de aviação.
Daquele bairro nostálgico, voltamos para o centro. A rua era a São Geraldo. A casinha velha e azul quase de esquina com um quintal que se transformava numa Nárnia. Ali inventávamos histórias e foi ali que descobri que ser gente grande dói. Chegou o tempo das decisões. Tempo de planejar o (im)planejável. Tempo de fazer escolhas que pensava ser para a vida – ah, gastei tanto tempo para compreender que nenhuma escolha é para sempre – e então decidi.
Deixei aquela casa rumo ao seminário. Fui buscar responder à minha vocação. Foram outros tempos e experiências. Talvez eu escreva outra crônica sobre essa fase da vida. Então: saí dos Zarco mas os Zarco nunca saiu de mim. Acredito que isso aconteceu com todos os que foram cria dessa cidade. Passaram por histórias e memórias. Fizeram escolhas e tomaram decisões, mas o gostinho dessa terra acolhedora, por mais distante que estejamos sempre corre nas veias. Ser cria dos Zarco é ser pleno de memórias. É conectar com outras histórias, semelhantes e diversas da sua e mesmo assim sentir-se em casa. É percorrer as ruas do presente sem negar o passado que revigora. É ser filho de uma terra, mesmo estando ausente.
Hoje brincamos no facebook com as máximas “Se diz cria dos Zarco” e pudemos rememorar nossas histórias. Um pequeno exercício em meio ao mundo adulto que vivemos. Uma pausa nas obrigações que nos impomos como supostos adultos. Um refrigério para a alma de criança que é sufocada com nossas reuniões chatas e sem futuro. Hoje foi dia de revisitar aquilo que nos mantém vivos em meio ao caos – nossa história. Sou cria adotiva dos Zarco, mas dali tirei muita vida e hoje sou o que sou por ter vivido minhas memórias. Obrigado Bodoque; obrigado Zarco; Obrigado cidade do meu coração.
Fábio Costa
E quem não é dos Zarco (explico para desfazer as dúvidas: Arcos é uma cidade do Centro-Oeste Mineiro, apelidada de Bodoque ou simplesmente, Zarco) sente como se fosse. Essa cidade abraça seus munícipes com alegria e pura filiação. Assim aconteceu comigo. Cheguei aqui em 1986, aos 8 anos de idade. Somado ao novo deste lugar que se instaurava, seguia assustado, ouvindo meus pais conversando sobre a morte de Tancredo e a possibilidade de uma “guerra”. Aquelas palavras marcaram minha infância e chegada nestas terras.
Ali na Vila Boa Vista nos instalamos. A escola foi um locus de aprendizado. O bairro um charme. Fiz grandes amizades. Até meus óculos eu perdi na enxurrada que descia caudalosa no morro da vila. Quando cheguei em casa e contei foi uma surra só.
Dali mudamos para a Rua Vereador João Veloso onde me encantava o caminhão do seu Zé na esquina. Uma máquina velha encostada com uma carroceria esburacada. Ele servia de palco para encenar a vida que eu queria. Fazíamos teatro para nossos pais. Sabe? Sempre sonhei em ser ator. Talvez fosse comediante, mas a vida me lançou noutra direção e reprimi muito do humor que havia em mim. Enfim, foi preciso crescer para compreender que nem sempre se é o que se deseja, mas nos encaixamos na dinâmica da existência. Outra memória que trago do tempo vivido nessa rua era as brincadeiras de fim de tarde entre elas a amarelinha proibida de ser pulada no tempo da quaresma. As cadeiras de trança colocadas nas calçadas para a prosa dos adultos. Recordo minha mãe utilizando o pente fino para nos proteger dos piolhos. Ainda sinto a dor no couro cabeludo.
Da Vereador João Veloso fomos para o bairro Esplanada. Ah, quanta alegria. Parecia roça. Não tinha nada. Enquanto meu pai construía a nossa casa, recordo da árvore no meio do pasto. Subia nela e ficava mentalizando a casa pronta e dizendo a mim mesmo: “daqui uns dias não poderei ver o lado de lá”. A casa ficou pronta e acolheu nossa família, imperfeita, mas desenhada por Deus para viver uma grande história. Lembro-me do campinho, da trave de gol assassina (minha mãe gritava: “sai de perto dessa trave menino – ela cai e te mata”). Lembro-me dos cavalos e do coice que levei ao voltar pra casa. Fui arremessado por debaixo da cerca de arame farpado. As idas para a Escola do Maricota de bicicleta e do redemoinho de vento que me lançou longe quando eu atravessava o campo de aviação.
Daquele bairro nostálgico, voltamos para o centro. A rua era a São Geraldo. A casinha velha e azul quase de esquina com um quintal que se transformava numa Nárnia. Ali inventávamos histórias e foi ali que descobri que ser gente grande dói. Chegou o tempo das decisões. Tempo de planejar o (im)planejável. Tempo de fazer escolhas que pensava ser para a vida – ah, gastei tanto tempo para compreender que nenhuma escolha é para sempre – e então decidi.
Deixei aquela casa rumo ao seminário. Fui buscar responder à minha vocação. Foram outros tempos e experiências. Talvez eu escreva outra crônica sobre essa fase da vida. Então: saí dos Zarco mas os Zarco nunca saiu de mim. Acredito que isso aconteceu com todos os que foram cria dessa cidade. Passaram por histórias e memórias. Fizeram escolhas e tomaram decisões, mas o gostinho dessa terra acolhedora, por mais distante que estejamos sempre corre nas veias. Ser cria dos Zarco é ser pleno de memórias. É conectar com outras histórias, semelhantes e diversas da sua e mesmo assim sentir-se em casa. É percorrer as ruas do presente sem negar o passado que revigora. É ser filho de uma terra, mesmo estando ausente.
Hoje brincamos no facebook com as máximas “Se diz cria dos Zarco” e pudemos rememorar nossas histórias. Um pequeno exercício em meio ao mundo adulto que vivemos. Uma pausa nas obrigações que nos impomos como supostos adultos. Um refrigério para a alma de criança que é sufocada com nossas reuniões chatas e sem futuro. Hoje foi dia de revisitar aquilo que nos mantém vivos em meio ao caos – nossa história. Sou cria adotiva dos Zarco, mas dali tirei muita vida e hoje sou o que sou por ter vivido minhas memórias. Obrigado Bodoque; obrigado Zarco; Obrigado cidade do meu coração.