Ruas, pessoas e crenças
A tarde de sol causticante do veranico de janeiro não refreava o entusiasmo das pessoas, mulheres e crianças, salvo algum idoso de poucas condições físicas, porque era meio de semana e os homens estavam na lida. Idosas e meninas-moças recortavam bandeirolas coloridas em papel de seda. As mulheres mais jovens, num mutirão animado e tagarelante varriam com grandes vassouras improvisadas com alecrim do campo, a via de pouco movimento, levantando uma nuvem de poeira que umas tantas outras tentavam evitar. Estas borrifavam, espadanando com a mão a água que traziam do ribeirão em latas de querosene. Rapazolas abriam buracos à beira da rua descalça, onde fincariam as hastes dos bambus ramalhudos dos grandes arcos sob os quais passaria a procissão do santo padroeiro.
Durante os nove dias que antecediam o 20 de janeiro, eram assim todos os anos, cada dia uma rua, por onde o santo passaria em sua visitação às famílias da pequena cidade, passava por aquele processo de arrumação. A Rua da Vargem ficava especialmente bonita, toda varrida e enfeitada de ramagens e flores. As mulheres punham toalhas coloridas nas janelas de madeira, pares de pires com velas que se acendiam na passagem do cortejo. Na Rua do Meio era diferente porque ela já tinha calçamento de paralelepípedos e era margeada por passeios cimentados, o que impossibilitava o erguimento dos arcos de bambus, também as pessoas eram mais ocupadas e muitas janelas já não eram de madeira. Outro fator desfavorável era o tráfego de veículos, inclusive de ônibus, que a “rodoviária” era de frente o Bar do Cristóvão. Mesmo assim o santo não passava por ali sem uma justa homenagem. Justa e merecida. Era o santo de devoção daquela gente. O soldado cristão de Narvonne, França, martirizado no final do século III, era o protetor contra o que mais nos aterrorizava então: a peste, a fome e as guerras.
Por esse tempo uma figura conhecida, certamente ainda lembrada por alguns, apresentava às famílias outro ícone de sua particular devoção, percorria as ruas conduzindo a imagem de Nossa Senhora da Vitória, rezando o terço e entoando cânticos marianos, no que era seguida por um grupo de piedosas senhoras. Chamava-se Maria Aleluia Rocha, a Dona Neguinha, e estava já na casa dos sessenta. Era solteira tal qual a irmã Inês, que morava com ela numa casinha situada no terreno onde hoje está o prédio do Banco do Brasil. A casa tinha um grande quintal com muitas árvores frutíferas para desespero das duas senhoras e alegria da molecada.
Maria Aleluia era filha do popular Chico Rocha. Quando menino ouvia meu avô falar com solene respeito desse homem singular. Segundo o velho, era um sujeito de muita cultura, frequentemente requerido em discussões, cuja opinião era quase sempre acatada. Contava de feitas em que seu parecer dirimia questões sérias de abstrusos impasses. Vim conhecê-lo mais profundamente quando tive acesso ao acervo de documentos antigos de uma instituição de que participo há mais de trinta anos, na qual exerceu diversos cargos de 1912, quando sua filha, a menina Neguinha tinha apenas seis anos de idade, até a década de 1946. Francisco Rodrigues Rocha é exemplo de homem que contribuiu para o crescimento de uma cidade que o esqueceu.