Em nome do trabalho
Aguardo numa dessas vergonhosas filas de banco, o adjetivo é empregado pelo iracundo senhor à minha frente, um sujeito retacado que parece não estar num de seus melhores dias. Não se queixa só das filas, mas de tudo e de todos. O mundo lhe parece apodrecido. Observo as veias saltadas em sua fronte e temo que tenha um infarto aqui mesmo, o que virá a atrasar ainda mais o expediente. Fico murmurando monossílabos concordes, fingindo atenção aos seus amargos comentários enquanto o fantasma de Nietzsche cochicha na minha mente: “amor fati, meu chapa! Guenta aí.” Viajo para um tempo em que tinha esses acessos de indignação estéril, foi quando envelheci vinte anos em dez e conquistei uma companheira fiel de nome hipertensão com quem tenho aprendido muito sobre moderação e tolerância. Avalio agora que de nada adiantou o meu desgaste e que as coisas só pioraram de lá pra cá, mas apesar disso tenho andado menos infeliz.
O homenzinho irritado sustenta o corpo, ora num pé, ora noutro, muda de mão a todo instante o calhamaço de guias e faturas. Agora desce o pau no governo em todas as suas instâncias e levanta a tampa da fétida lata de lixo em que se transformou a política brasileira – palavras do moço – e usa a expressão que mais justifica nossos procedimentos escusos: “é o meu trabalho, meu irmão. Eu estou trabalhando.” Parece-me que em nome de estar trabalhando posso transgredir leis, passar por cima de princípios - até dos que apregôo ter – posso estacionar em local proibido, ocupar calçadas, derrubar florestas inteiras, poluir rios, perturbar o sono dos vizinhos... Afinal, estou exercendo o direito sagrado de trabalhar.
Ocorre-me imediatamente o caso do meliante que se acha parte importante do nosso quadro social e declara ao repórter: “veja quantos empregos a minha classe gera neste país, meu amigo, imagine quantos juízes, promotores, advogados, policiais, jornalistas, vigilantes e agentes da segurança privada seriam desnecessários se não fosse o trabalho que desenvolvemos”. Outro, questionado sobre os seus eficientes métodos para invadir residências supostamente protegidas por uma parafernália de recursos eletrônicos, responde que não tem a obrigação de revelar as técnicas do seu trabalho. Isso denota que, lícito ou ilícito, trabalho é trabalho e ouvindo as pessoas por aí, percebe-se que mais gente do que se imagina tem essa opinião. Parece que anda nos faltando um melhor senso quanto a graus de criminalidade.
Na tentativa de salvar dessa sua tempestade interior o meu colega de fila, comecei uma dissertação sobre trabalho, começando pela etimologia da palavra que vem do latim tripalium, junção dos tri (três) e palum, (pau), nome de um instrumento romano de tortura constituído de três estacas de madeira bastante afiadas. Assim, originalmente, o trabalho era uma tortura. Os escravos e os pobres que não podiam pagar os impostos é que passavam pelas torturas no tripalium. Assim, quem trabalhava, naquele tempo, eram as pessoas destituídas de posses.
O sujeito me olha meio embasbacado, piscando incessantemente os olhos miúdos, é como entreter uma criança birrenta. Vai se acalmando visivelmente.