Faz um Gol pra Mim

O futebol é uma caixinha de surpresa. Não importa se é na seleção brasileira, num campeonato estadual ou municipal, ou no futebol de domingo, no campinho de várzea atrás da igreja abandonada. Sempre existe a possibilidade do pode ser que seja, ou pode ser que não seja, e talvez por isso, o futebol seja tão, digamos apaixonante, e digno de ser o divisor de águas em um relacionamento.

Veja o caso de Jeferson. Sim, Jeferson, filho de dona Judite com seu Ary da Mercearia. Jeferson desde pequeno prometia ser um grande jogador de futebol. Seu sonho era ser ídolo no Flamengo, mas se fosse no Vasco já estava era de bom tamanho. Tava sim! O importante era as câmeras o filmarem dedicando seu gol para sua esposa, que ainda nem tinha, beijando a aliança, e balançando os braços, ninando o ar, como alguns outros jogadores faziam. Jeferson amava o futebol e a fama dos jogadores. Sua mãe queria que ele fosse médico. Queria quer fosse doutor Jeferson Luiz, o pediatra mais respeitado da zona norte e subúrbio do Rio de Janeiro. Mas Jeferson sabia que, na verdade, e sua mãe queria era ter um pediatra particular na família. Aos quinze anos, Jef tinha seis irmãos, e oito sobrinhos, além de uma penca de primos espalhados por Madureira. Sua mãe queria um médico pra essa trupe toda. Mas ele, seu filho, queria seu nome sendo gritado por Galvão Bueno, e depois, anos depois, ver sua cara num jogador de videogame, num time europeu, andando pelo mundo.

Foi então que o rapaz, aos dezesseis anos conheceu Alice. No supletivo, para ser exato. Alice era filha do professor de química, e Às vezes, assistia a aula do pai. Jeferson se apaixonou de cara. Alice era linda, inteligente, e trocava olhares com ele. Além disso, todo dia, nos intervalos, quando os meninos amassavam latinhas de cerveja ou refrigerante, e faziam elas de bola, lá estava menina observando, sorrindo, e encarando o artilheiro das peladas. E não demorou para o primeiro beijo. Foi no cinema, antes do jogo contra o time dos Guepardos da Tijuca, com sede no Morro do Turano. Nesse dia, o filme tinha sido ótimo! Romance! Beijos! E pela primeira vez, uma menina deitava a cabeça no ombro dele. Nem precisa-se comentar e relatar como aquilo foi incrível. Jeferson estava namorando. E estava feliz. Mas o jogo... Bem, o jogo foi meio marcante para ele.

Após o filme acabar, lá pelas bandas das sete da noite, os dois foram comer alguma coisa no Madureira Shopping. Lá, Alice segurou a mão do então apenas “ficante”, olhou em seus olhos e pediu com voz melosa: “Faz um gol pra mim?”. Ele sorriu de volta, e a beijou. Aquilo era um pedido simples. Fácil. E gol era algo que ele fazia todas as vezes que jogava futebol. Ele prometeu não só um gol, como três, e com direito a comemoração inspirada e coreografada para ela, que ele pensaria enquanto estivesse vestindo o seu uniforme.

E lá foram eles para partiram para a Tijuca. O jogo seria num campo de grama sintética alugada pelos diretores dos dois times. Era começo de uma taça municipal, com vários olheiros na torcida. Era um jogo importante para todos ali, principalmente para Jeferson, pois, pela primeira vez, teria uma namorada torcendo, e estava devendo um gol para ela. O jogo começou. Foram cinquenta minutos de partidas. Muitos chutes, muitas tentativas, mas nada de gol. Nenhum. Nada mesmo! A torcida do time de Jeferson não entendeu. O time vinha de uma gana de vitórias heroicas, em que seu artilheiro fazia pelo menos três gols por partida. E ali, num jogo aparentemente fácil, o time ficou no zero a zero.

Alice estava emburrada esperando Jeferson na porta do clube. Emburrada, e aparentemente cansada. Ele tentou abraça-la, mas ela esquivou. Não queria assunto. A volta pra casa foi silenciosa. Ele perguntava o que ela tinha, e ela dizia nada. Ele perguntava o que tinha acontecido, e ela dizia que nada. Ele tentou abraça-la de novo, e ela disse que estava calor. E assim foi até chegar em casa.

Os dias se passaram, e veio outro jogo. Outra tentativa. Outra oportunidade de escrever o nome na liga de municípios. Alice estava de boa. A semana tinha sido apaixonada para os dois. Muitos beijos, muitos amassos, e até finalmente chegaram à primeira vez. Antes do jogo, ela o puxou para cima de um hidrante na porta do clube, e disse: “Só quero ver se vai fazer um gol pra mim!”. Ele sorriu sem graça, prometeu não só um gol, mas três! E ainda prometeu algum tipo de comemoração ensaiada e coreografada. Se beijaram de novo. E o gol não aconteceu. De novo. E a volta para casa foi exatamente igual.

Durante aquela semana o casal pouco se falou. Alice estava estranha, e Jeferson desistiu de tentar algum tipo de contato. Assim foi durante dois meses e oito jogos, a frase “Faz um gol pra mim!” tinha se tornado uma maldição para Jeferson antes dos jogos. O rapaz estava amargurado, triste, e não conseguia se concentrar. Alice algumas vezes até era simpática com ele, mas cobrava gols, cobrava atenção, e chegava a dizer que, provavelmente, para as outras namoradas ele fazia até gol de bicicleta. Bem, Jeferson nunca havia namorado antes. Ele realmente vivia para o futebol, para o sonho. Alice era um sonho também. Aquela linda morena de olhos puxados e lábios grossos. Com cabelos cacheados lindos, e um pescoço incrível... Sim, Jeferson adorava aquele pescoço... Ele estava feliz com ela, mas ela tinha uma frase de baque. Alguns ficam impactados com “Eu te amo!” antes da hora! Outros com “Ah, vamos alugar uma casa!”, e outros com “Você faz o que você quiser! Pode sair com seus amigos! Mas depois num reclama!”... Ah, e muitos ficam impactados e estatelados com um “Você que sabe!”. Mas a frase de baque de Jeferson era aquela que ele preferia nem mesmo repetir.

Então... Foi então que Alice terminou o namoro. Foi num sábado, durante uma pizza na lanchonete localizada em Rocha Miranda. Ela simplesmente sua última fatia da Portuguesa, e disse que não dava mais. Disse que não se sentia mais amada. Que ele havia mudado. E que, acima de tudo, como ele podia nunca ter feito um gol pra ela. Antes, querendo magoa-lo, Alice ainda disse que ele era um péssimo jogador, e que deveria realmente repensar o lance de ser pediatra. Nem é preciso dizer o quanto Jeferson ficou magoado e desanimado.

Porém, um dia, num domingo chuvoso que praticamente alagou o campinho antes da partida decisiva, Jeferson estava colocando as chuteiras, bastante desmotivado. Não fizera um só gol durante todo o campeonato. Muitos diziam que ele estava jogando mal de propósito. Outros que era caso de macumba ou inveja dos adversários. Era o campeonato da vida dele. Mas o grande jogador, antes apaixonado, agora magoado, estava apagado.

Foi que neste dia incomum, enquanto amarrava desajeitadamente sua chuteira direita já surrada e suja de lama, uma jovem se aproximou dele de mãos dadas com uma criança de uns cinco anos. Protegendo os olhos da claridade, até se esconder na sombra da moça, Jeferson se surpreendeu com a beleza dela. Ela sorriu para ele. A criança também sorriu. Ela disse que seu irmãozinho ali era fã dele, mas até que do Neymar, e que Jef para ele era um herói. O jogador sorriu. Sentira-se bem naquele instante, como não se sentira há uns dias. Abraçou o menino, e a irmã dele o abraçou em retorno. Enquanto se afastava, a moça olhou para trás e sorriu de novo. Aliás, ela sorriu de novo, soltou a mão do irmão e voltou na direção de Jeferson. Ele sorriu. Ficou nervoso.

A moça foi se aproximando como que em câmera lenta. E parou diante dele. Os olhos se cruzaram. Ele olhou para os lábios dela, ela para os dele. “Posso te pedir uma coisa?” perguntou ela. Jeferson fechou o sorriso. Gelou. Chegou até a ter um princípio de dor de barriga nervosa. “Ela não vai pedir um gol! Ela não vai pedir um gol! Ela não vai pedir um gol!”, pensava ele quase que num mantra. Ela então se aproximou ainda mais, ele pode sentir de perto seu hálito de bala Halls de uva verde. “Depois do jogo vamos dar uma volta, eu e tu, e comer um pizza?”. E os ombros do rapaz caíram. Foi como após uma pane, as máquinas dentro do corpo dele, e as engrenagens voltassem a funcionar com tudo. Ele se sentiu vivo, elétrico, e após muito gaguejar e buscar palavras, disse apenas um “Bora, pô!” e ambos sorriram abobados.

Naquele dia, Jeferson fez incríveis cinco gols! CINCO! Dedicou gol para sua mãe que nem assistia ao jogo. Dedicou gol para as crianças que o aplaudiam de pé. Dedicou gol até para o pipoqueiro qual devia cinco Reais e cinquenta centavos há um mês, o que não quitou sua dívida, pois o pipoqueiro fingiu nem ver. E assim foi fazendo gols pelo mundo. Sem pressão. Sem culpa. Sem querer agradar quem fosse. Ele só fazia os gols. Como sempre fora. E Alice, bem... Ela nunca deixou de acreditar que todos os gols que vira pela televisão, que seu ex olhava para a câmera mandando beijos, eram todos para ela.

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 04/03/2018
Código do texto: T6270663
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