O presidente e a ultrapassagem da finitude

Esta que estou experimentando é uma alegria que me teria sido negada não fosse meu comprometimento com aquilo em que acredito. Talvez passasse a vida inteira sem entrar nesta casa de vizinhos, conhecidos de décadas, com quem cruzo nas ruas e troco cumprimentos amigáveis, mas com os quais não tenho um relacionamento que me levaria à intimidade de seu domicílio ou que os trouxesse à minha casa só para uma simples visita.

Cá estamos, minha esposa e eu, na cozinha e o que nos traz é essa senhora nascida em 24 de dezembro de 1915, ou seja, há cento e dois anos. Seus olhinhos muito vivos exprimem alegria ao nos verem. Caminha até nós, arrimada só por segurança no braço do filho, muito elegante como sempre no seu terno saia e blusa em tons claros, após os cumprimentos com as praxes indispensáveis para essa gente educada em outras eras, senta-se repousando as mãos sobre a mesa. Fica em atitude de respeito aguardando o ato religioso que lhe abre as manhãs de todos os domingos, sempre pelas mãos de ministros extraordinários, a condição em que me encontro.

Olho para o rosto sereno da anciã que se apresenta diante de mim e penso no que essas marcas do tempo têm a contar das quase quarenta mil vezes em que o sol nasceu e se pôs diante dela com sua abissal indiferença de astro rei. No dia em que lhe perguntei a idade e ela ergueu o dedo indicador simbolizando o número um, passou-me pela cabeça que lhe faltara momentaneamente a razão, impressão que ela logo desfez: depois dos cem comecei a contar de novo. Lembrei-me da minha Kombi 79 quando zerou o velocímetro e recomeçou a contagem dos quilômetros rodados.

Baseados no avanço da ciência, muitos acreditam que a longevidade alcançará níveis extraordinários em poucos anos, O biomédico inglês, Aubrey de Grey, especialista no assunto, disse que já nasceu a pessoa que vai chegar aos cento e cinquenta anos. Doutora em filosofia pela Sorbonne Universidade de Paris e professora titular de teoria da comunicação da Universidade Federal Fluminense, Maria Cristina Franco Ferraz, diz que "a tecnociência contemporânea se move em direção a um projeto de ultrapassagem da finitude, enquanto no século XIX o avanço visava a um aprimoramento das condições da vida humana sobre o planeta, na contemporaneidade ele passou a almejar a superação da insistente tendência do 'orgânico' ao envelhecimento, à obsolescência e à degradação."

Nosso presidente, talvez pra não ser repetitivo, fala em cento e quarenta anos. Para ele a longevidade dos brasileiros é que está arrebentando com a Previdência Social, o que deixa claro que até um brilhante chefe de estado pode ser risível de vez em quando, por que não? Oxalá essas benesses anunciadas por profetas, cientistas, filósofos e presidentes do nosso tempo alcancem também os brasileiros paupérrimos, milhões deles, que sobrevivem com um salário mínimo quando não acossados pelo flagelo do desemprego, que dependem do Sistema Único de Saúde para se tratarem.

Ela ergue as mãozinhas marcadas de manchas senis numa oração silenciosa, tem no rosto sereno um sorriso de meia luz. Não sabe mais das injustiças, não depreende mais das conversas que ouve a progressão do abismo que sempre existiu entre uns homens e outros, ditos irmãos pela quase totalidade das religiões. Quem sabe se suas preces não são para os que ainda estão no início do caminho que já palmilhou?

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 02/03/2018
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