Crônica de um teclado sem acento
Uma caneca de café cai sobre o teclado. Desesperado diante da cena do notebook inundado em uma poça de papéis e café o cronista corre pela casa em pânico gritando por socorro. Mais um dos muitos acidentes domésticos ocasionados por uma alma parcialmente inquieta e criativa em um corpo desatenciosamente distraído e desajeitado. Tudo o que podia fazer era secar o aparelho e aguardar seus sinais vitais enquanto prepara e toma mais uma caneca do líquido sagrado. Merda, aquela era a última caneca, feita com tudo o que podia ser extraído de pó do fundo da lata. Horas encarando o aparelho sem saber o que fazer. Aperta timidamente um botão. As luzes piscam, o teclado se acende e a tela emite alguns espasmos de luminosidade desconexa e confusa. Aquilo não parecia nada bom. Nessas horas, o cronista, dramático e desesperado, repete a milenar sabedoria de baixar a tampa e esconder a merda das vistas. Deixa o computador fechado sobre a bancada da cozinha e vai procurar outro aparelho, preferencialmente não eletrônico, com que se ocupar.
Dias de agonias e desespero se seguem entre espiadas desconfiadas e miradas assustadas ao aparelho, que ainda repousava na mesma posição sobre a bancada de madeira. Que falta lhe fazia aquela velha máquina de escrever, presente do avô, impregnada de memória e sentimento. Durante muito tempo, carregou-a para cima e para baixo, mas, acabou sendo deixada para trás na última mudança, por preguiça e conveniência, afinal, mesmo os dados à coleta e acúmulo de relíquias e antiguidades uma hora se cansam de carregar tanto peso, ainda mais com os padrões fitness do mobiliário e dos utensílios domésticos e eletrônicos de hoje em dia. A máquina de escrever ficava agora sobre a mesa do velho quarto na casa dos pais, acumulando poeira dentro daquela cápsula do tempo. Máquinas de escrever podem até estar um pouco fora do peso e de padrão, mas jamais nos traem de uma maneira tão vil. E como o jovem cronista nada entende de eletrônicos, que julga serem apenas uma invenção diabólica para nos aprisionar e distrair, simular virtualidades, tomando-nos o tempo e incutindo-nos dependência, apenas oferece ao computador a espera e o tempo que aquela máquina por tantas vezes lhe roubou.
Certa noite, alguns dias depois do acidente, toma coragem e liga o aparelho, que se inicia instantaneamente e logo emite seus ruídos e luzinhas habituais, mas o teclado nada mais respondia. Noves fora e mais alguns dias sem olhar o aparelho na esperança de um silencioso milagre que restabelecesse sua saúde e restaurasse a velha ordem, e entre uma ou outra tentativa desesperada de devolver um teclado à vida, o cronista ora aos deuses da informática para que lhe devolvessem as letras e o alfabeto, seu bem mais precioso. Malditas máquinas infames, incapazes de segurar o fôlego ou respirar debaixo d'água. Ora, se a tivesse atirado em uma piscina ou uma privada, se ao menos tivesse ficado imersa por horas, mas não, apenas algumas gotinhas de café rapidamente secas derrubam-nas como a mais delicada flor silvestre. Seduzem-nos com as mais variadas peripécias e truques baratos, prometem-nos a perfeição e a imortalidade, mas sempre nos abandonam à menor queda de liquido ou golpe de gravidade.
Computador e teclado voltam enfim à vida, e tudo parece estar de volta ao seu lugar. O cronista chega acreditar mesmo que as modernas máquinas já viessem de fábrica com algum poder ou feitiço de autocura, ou então foram as preces aos seus deuses cibernéticos. O prazer de voltar a escrever lhe enche a alma, estala os dedos e dezenas de palavras e ideias ocorrem-lhe para celebrar aquele momento tão feliz e solene.
A decepção não tarda (sempre ela) e fica por conta de uma tecla, uma única tecla. Não era letra, faltava um acento. Nem mesmo uma mísera demonstração de autocura que prestasse. Parecem estar sempre fazendo chacota de nós, deixando sempre algum pequeno defeito escondido no caminho. Fosse o teclado, jogaria tudo fora, atiraria o computador pela janela, mas era apenas um tecla, apenas um acento. E quem seria capaz de um homicídio eletrônico por motivo tão torpe e fútil? Alto lá! Embora possa parecer reação desmedida, nada pior que uma vida sem acento. Nada ilustra tão bem um mundo em desordem do que um teclado sem acento, simulando a perfeição e a completude e revelando, então, de repente, a ausência e o caos. Era como se a vida perdesse o sentido. E para o cronista aquela era a definitiva prova do desacerto do mundo. Planos frustrados, conversas impedidas, mensagens imperfeitas, provas e aulas interrompidas, romances inacabados pela simples impossibilidade de se acentuar. Toda uma vida suspensa pela falta de uma tecla. Chegou a desejar que falasse outra língua. Mas por mais que um acento pudesse ser desprezível (e desprezado, por boa parte dos falantes) não poderia ele renegar sua língua e sua pátria, ainda que aquele acento que faltava lhe deixasse um sentimento profundo de vazio e incompletude. Era preciso aprender a conviver com sua ausência e contornar sua falta.
Ora, não se trata de purismo. Para um cultor do vernáculo a falta do acento é uma pena tão dolorosa quanto um piano desafinado ou um violão sem corda. E o pior era a banalidade e o ridículo de toda a situação a lhe jogar na cara todo seu drama exagerado e a desafiar seu autocontrole, dizendo-lhe que não sofresse por tão pouco. Meu Deus, que coisa mais mesquinha e vulgar. Fosse uma imensa tragédia, dar-se-ia um jeito ou aceitar-se-ia a vida, mas as pequenas desgraças são piores e mais incômodas que os grandes dramas, simplesmente porque não podemos contorná-las sem contaminar nosso cotidiano. Fosse uma ocorrência de grande magnitude, uma história perdida por um desses bugs que word dá a todo tempo, sempre jogando fora nossas valiosas horas de trabalho ou criatividade, poderia até lhe render um romance magnífico. Mas quem levaria a sério tamanho desconforto e drama por um simples acento? Há quem sofra por cada coisa nessa vida. E se é preciso enfrentar corações partidos e dores físicas, também é necessário enfrentar e escrever sobre máquinas quebradas, instrumentos desafinados e teclados sem acento.
Aquela não era a primeira imperfeição de um computador já velho e lento que colecionava arranhões, trincas e até mesmo alguns remendos. Contudo uma tecla no meio do caminho, eu lhes garanto, pode ser pior que muito defeito físico ou traição. Seria a hora de meter a mão no bolso, raspar o fundo do cofre e levantar as parcas economias para comprar um novo computador? E tudo isso por causa de um mísero acento? Não duvidem, um acento pode dar fim a um relacionamento de anos. Aceitar os pequenos defeitos é mais difícil do que os enfrentar os grandes. E foi preciso um acento para que se tomasse enfim uma decisão. Mas, ao mesmo tempo, e antecipadamente, o cronista já sofria só de imaginar as horas de agonia perante sites de lojas virtuais, procurando anúncios de promoções e condições de pagamento, tentando aprender alguma coisa sobre configurações e nomenclaturas que mais parecem física quântica ou espacial. O mundo segue em desordem. Há tanta coisa sem assento nesse mundo. Toda uma vida suspensa por um mísero e desprezível acento. Todas suas histórias interrompidas, conversas envergonhadas, sinônimos insatisfatórios desesperadamente buscados para desviar do acento, mas que no fim, nunca convenciam. Pelo menos não o cronista. É como se fosse impossível exprimir verdadeiramente qualquer coisa sem aquele acento que faltava. Por fim, o cronista até encontrou um jeito de contornar o problema, mas como todo remendo ou gambiarra só funcionava parcialmente, e conviver com essa improvisação lhe dilacerava a alma. E entre tantos sofrimentos acumulados e tantas coisas reprimidas o cronista finalmente entende e se espanta diante da constatação de que era ele, o acento, o maior e mais grave dos seus problemas. Ali estava a origem de tudo.
Talvez seja isso mesmo. Talvez um simples acento possa ser tudo o que nos separa da felicidade ou aquilo que precisa ser restituído para restaurar o mundo e a vida ao normal. Não digo que um acento devolva ao homem sua felicidade, mas talvez o coloque novamente no caminho. Escrevi do celular.
Grandes cronistas escrevem sobre grandes assuntos, cronistas medíocres tentam fazer literatura com teclados quebrados. Mas é tão libertador falar de míseros acentos e dos dramas patéticos e cotidianos. Um computador novo está a caminho, mas certamente não será a solução pois o cronista continuará andando pela casa à procura de novos pequenos dramas domésticos aparentemente insolúveis com os quais se ocupar. Mas no fim, a grade ironia é talvez tenha sido preciso uma maldita tecla travada e um teclado incompleto para lhe devolver à escrita e destravar a criatividade que, essa sim, andava mais emperrada que uma máquina velha.