O MISTO QUENTE DO BAR DO ABEL

Nossas vidas são compostas de momentos, fatos e pessoas inesquecíveis.

O MISTO QUENTE DO BAR DO ABEL

Todos os dias da semana depois das 19 horas, a galera da Pracinha ia chegando à Praça João Pessoa, em São Vicente, onde hoje está a Vila de São Vicente, em frente à igreja Matriz. Era uma praça com jardins e no centro havia um busto do grande pintor, historiador, fotógrafo, cartógrafo Benedito Calixto, embora denominada João Pessoa, político sobrinho do presidente Epitácio Pessoa, que deu nome à capital da Paraíba.Na realidade a praça era o ponto de referência e local de encontro da turma, independente de horário. O pessoal ficava ali, conversando em pequenos grupos e rolavam os mais variados assuntos. A Praça João Pessoa é ligada à Praça Bernardino de Campos pela Rua Erasmo Schetz. Do outro lado, na mesma direção fica a Rua Henrique Ablas, que termina no sopé do Morro dos Barbosas . A casa da família Del Vecchio fica na esquina desta rua com a praça. Para quem não sabe, o filho mais velho dessa família era o Emmannuelle, vicentino e grande centroavante do Santos e da Seleção Brasileira. Em sua primeira partida profissional, Pelé entrou em campo substituindo Del Vecchio. Bicampeão pelo Santos em 1955 e 1956, jogou no Milan, Napoli, Boca Juniors, São Paulo, Bangu. Foi técnico de diversas equipes. Para nós, era o Meni, simplesmente. Personagem de São Vicente, que, em minha opinião, devia ser mais cultuado. Era genioso, tinha suas convicções, mas era um craque de futebol. Muito merecedor de todas as homenagens, estátuas, etc. Os outros irmãos eram Walter, Winston, Johnny e Frank . Todos bons de bola.

Em frente à casa dos Del Vecchio, do outro lado da rua, ficava o bar do Abel, onde a galera tomava um cafezinho ou um refrigerante. A maioria dos caras mais velhos trabalhava e podia dar-se ao luxo de tomar uma cerveja e comer alguma coisa como uma porção de salame com limão, linguiça calabresa com cebolas. Ao contrário do que ocorre hoje, menor de idade não bebia em bares e não comprava bebidas alcoólicas. Havia uma instituição chamada juizado de Menores que fiscalizava, multava e até fechava as portas de quem vendesse bebidas a menores. Eu, com uns treze ou quatorze anos, quando muito tinha dinheiro para tomar um refrigerante. Na época, não passava em minha cabeça comer fora de casa, a não ser em festas. Tomar café em um bar não tinha sentido. O Bar do Abel tinha balcão de mármore e estava sempre cheio de gente, muitos de nossa turma. Abel era um português simpático que atendia a todos e participava de muitas conversas com os clientes. Vez ou outra se irritava com alguém e dava uma dura no freguês. Mas, em minha memória, tudo que cozinhava era muito saboroso. Até que um dia ouvi o Osvaldo Assunto pedir um misto quente. Não dei muita bola, mas quando senti o cheiro do queijo prato derretendo na chapa fiquei prestando na feitura do lanche. Abel colocava uma generosa porção de grossas fatias que ele mesmo cortava de uma grande peça, jogava na chapa e ficava virando ate começar a derreter. Ao lado colocava um monte de presunto e virava alternadamente com as fatias de queijo. Pouco antes de ficar pronto, cortava um pão francês e o aquecia na chapa. Com a espátula, colocava o presunto quente na porção inferior do pão e, por cima, o queijo prato derretido. Assentava a metade superior do pão, prensava tudo e cortava em diagonal com a espátula. Usando a mesma ferramenta, colocava o sanduíche no prato. Trago até hoje na memória a visão daquele lanche com o queijo escorrendo pelas bordas, o presunto meio cozido e o pãozinho francês brilhando da gordura da espátula. Era comer, lamber os beiços e catar o queijo derretido que ficava no prato. Até hoje sou apaixonado por café com leite. Outra coisa inigualável era o pingado do bar do Abel.

“Comecei a apanhar cavalos marinhos para vender nas barracas de ‘Lembrança de São Vicente” e passei a andar “abonado”, quer dizer com dinheiro. Final de noite, sentava numa mesa encostada a uma parede e gritava “-Abel um misto quente e um pingado!” “-Já vai!”, respondia o português. Abel colocava o pedido no balcão, eu levava até a mesa, sentava e degustava aquela delícia. Era a glória.

Paulo Miorim, 26/02/2018

P.S.: Anos depois, entro em uma padaria próxima à Praia de Pernambuco, em Guarujá. O dono era o Abel, já mais velho. Reconheceu-me, conversamos bastante, perguntou de vários amigos do tempo da Pracinha. Onde estiver, que Deus o proteja.

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 26/02/2018
Reeditado em 22/09/2020
Código do texto: T6264953
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