Cidade Abandonada

Certo dia eu caminhava com um amigo com quem partilho magreza e aguadeza psicológica. Saíamos de casa, com o objectivo de cairmos no desconhecido e explorarmos zonas que costumávamos evitar, mas o nosso destino não tinha nome. Tínhamos mas é fome e as algibeiras carentes de moeda, os estômagos mais lisos do que a cabeceira de uma cama e duas cabeças completamente sem juízo.

Calçava uma All Star negra e cravava no tronco um "Parte os Cornos", mas não se tratava dos de tecido leve e quase que esponjoso. Esse empunhava o touro vermelho, que nunca sorri, representando a Chicago Bull Team, grife que peguei no ano passado para exibir o meu amor pelo basquetebol. Por outro lado, infalivelmente, tinha o pulso direito preenchido com pulseiras de borracha, e já até me disseram que isso é "kimbandice", mas colares e pulseiras são meus amigos de infância, portanto não os poderia abandonar numa bancada qualquer sem que por mim fossem comprados, ao passo que, no pulso esquerdo, um relógio preto e meio desacertado batucava as horas do dia como se algo de grave estivesse prestes a acontecer.

Na verdade, não há normalidade alguma em ter que sair de casa sem saber aonde ir.

Apitei pro Ismael e sem demoras o rapaz surgiu-me, fininho como sempre, sem nenhum fio de barba e com os óculos inteiramente cábula de uns que eu usava. Nunca percebi o que esse miúdo viu em mim para se auto-intitular meu discípulo. Mas, não sou obrigado a obrigar as pessoas a recuarem nas suas decisões, pois então que mesmo que ele ainda quisesse ser salvo, já era tarde demais porque os discípulos tendem a seguir os mestres em todos os lugares. Com os seus ténis maltratados e calções curtos, acreditando ser um pernudo, o Ismael não hesitou em acompanhar-me para nenhures.

A princípio, já me lembro, era uma tarde de sábado e a intenção era de ir visitar o meu homólogo, Wilson, que se encontrava adoentado. Poderia até dizer "acamado", mas atirado em sua casa, o Mauro, seu irmão mais velho, só deixou ainda mais claro o quão zungueiro é este meu amigo. O Wilson estava doente, mas mesmo assim saira sem avisar. Isso foi bem depois de termos matado a pé o Felício, o bairro Mártires do Kinfangondo, depois de termos ultrapassado o Nzinga e enfrentado o Rangel, sem falar do edifício escurecido, onde vive o meu kamba, e cujas escadas o têm fatigado bastante.

Como se pode notar, até aquele instante, ainda andávamos com um destino traçado. Só que, depois daí, não apetecia nada regressar a casa.

Então, demos tiro direito e quando menos esperávamos já estávamos no Maculusso. Com o soluço dos carros que faziam a banda sonora do filme da nossa caminhada, nos asfaltos entenebrecidos de Luanda, eu gerava ideias para novos instrumentais, assim que chegasse a casa. A conversa fluía, a fome roía, mas a vontade de andar à toa suportava até a poeira ofensiva que vinha das 14h00 de sol mal passado. Estava a ser uma tenra expedição sem guia turístico, porque no fundo éramos os dois cegos e perdidos. A única coisa que sabíamos é que não estávamos parados.

Minutos depois, demos de frente com o trânsito alucinado da Maianga, aqueles entrocamentos confusos e outras borradas rodoviárias. Posteriormente, pusemo-nos a pensar no próximo passo - era a partir daquele momento mini-introspectivo que Luanda, pelo menos a zona em que estávamos, parecia tão abandonada quanto movimentada.

Mirámos o Hospital Pediátrico e a subida que abraça o Prenda, porém não optámos por aquela montanha asfaltada, mas pela via que dava ao Alvalade. Pelo caminho, deu para percebermos que essa cidade esconde dois tipos de pessoa: os mortos e os que querem morrer, porque afinal, é inconcebível, numa sociedade em que se diz haver inclusão social, existirem tantos malucos e drogados até mesmo à beira da estrada. Apanhámos bué de poeira e quase ficámos com os pés presos nos asfaltos esburacados, porque o lixo e as águas paradas, edifícios suburbanos e raízes da electricidade que já se fora, quadras desportivas com teias de aranha e crianças sem bolas de saco ou balões por rebentar, mais velhos aguados e mulherengos nos becos com filhas alheias, tudo isso chamou-nos a atenção e fez-nos apenas ver que Luanda já era. Toda aquela agitação, toda aquela arruaça, reflectia o tamanho abandono para um lugar que dizem ter dono.

Pouco depois, um aparente casal de namorados quis saber de nós como pegar um táxi para a Mutamba. Dentro de mim eu morria de tanto rir, porque viram-nos com cara de exploradores da bandula, quando na verdade éramos apenas perdidos no deserto. Inventei um endereço qualquer, mas acredito que eles deram conta do recado e tiveram sucesso.

Já escalávamos a rua da Terceira Conservatória, e os nossos pés de meninos altos davam passos tão alargados que mal percebemos que já havíamos passado a Clínica Girassol. Saltámos para a paragem do Prenda e rebolámos andantes pelos atalhos que nos levavam a casa. Por fim, percebemos que afinal de contas não estávamos lá tão alheios, no tocante ao conhecimento de algumas zonas da nossa estrondosa cidade.

Widralino
Enviado por Widralino em 23/02/2018
Código do texto: T6262136
Classificação de conteúdo: seguro