A falta que a falta faz
 
 

 
Tinha escrito esse texto com o nome: "As metades da laranja", porém, ontem, uma colega me mandou um vídeo e, pasmem: ali estava quase que um resumo do que eu havia escrito aqui. Era uma leitura do livro infantil do poeta e cartunista americano Shel Silvestein  A parte que falta. Um livro elaborado com palavras e ilustrações simples voltadas ao público infantil, mas extremamente significativo ao falar da eterna busca pela parte que falta. Feito o registro do porquê da mudança do nome, vamos ao texto.
 
 
De forma consciente ou não, passamos a vida toda tentando encontrar a parte que nos falta. É como se fôssemos incompletos em tudo até a  encontrarmos. Isso nos coloca numa eterna maratona em busca de um outro ou algo que nos complete. Ela nos leva, algumas vezes, a deixar de  apreciar o percurso, pois justificamos nossa insatisfação  na vida sob a perspectiva de que  ainda não encontramos nossa metade.
 
Os livros infantis, em sua maioria, nos incutiu a ideia do  "final feliz" narrado nos contos de fada, pois o  príncipe e a princesa se casavam e viviam felizes para sempre. Era tudo muito simples. No entanto, Ninguém nunca nos revelou que era só o começo da história;  que  depois daquele "sim" havia um mundo a desvendar juntos, pois na vida real o encaixe nem sempre é perfeito entre as partes. E mesmo se encaixando perfeitamente, não há garantia alguma de que suprirá as faltas de cada uma.  Assim, fomos induzidos a acreditar que a felicidade está atrelada, necessariamente, ao encontro dessa outra metade.
 
Esse ideal de felicidade tornou-se a desculpa perfeita para justificar infelicidades e angústias, num quase sempre protelamento do "agora" em que cada um estabelece uma meta própria de busca individual para completar-se e ser feliz. Desse modo, uns acreditam que só serão felizes quando se casarem, formarem-se, passarem num concurso público ou mesmo quando os filhos crescerem. E, assim, seguem a esmo atrás desse roseiral mágico  da felicidade além do horizonte.
 
Enquanto isso, a vida vai passando e o percurso vivido é menosprezado em  prol dessa busca. Poucos percebem que a ânsia por chegar ao fim almejado impede -os de aproveitar o caminho;  de valorizar o que há de bom em si mesmos e nos que os rodeiam; de vislumbrar que nesses momentos de busca, surgem os mais belos poemas e canções; de notar que a vida é esse eterno fica frio e fica quente, dorme e acorda, perde e ganhar, cai e levanta. Viver em contradição faz parte. Linha reta só a da morte.
 
 
Desse modo, cada nova conquista tem brilho efêmero. Logo a incompletude volta e partimos novamente para essa incansável busca, pois nada é tão completo a ponto de  completar-nos. Às vezes, encontramos a parte perfeita, mas ela já é completa em si mesma ou  não nos  aceita como parte dela. Por outro lado, há quem nos considere sua parte, mas nós não nos sentimos parte dessa pessoa. Outras vezes, encontramos uma parte que se encaixa perfeitamente em nós, mas por medo acabamos sufocando e prendendo-a tanto a ponto   de  nos escapar entre os dedos. Em outras ocasiões,  deixamos nossa metade tão livre e solta que ela  termina indo em busca de completar-se em outro alguém.
 
Ainda assim, há uns sortudos que, num belo dia, tornam-se  a parte perfeita de alguém e unem-se com o intuito de viver "feliz para sempre". Porém, o "para serem " acaba  e logo vem a falta de um "não sei o quê". Então, num momento de lucidez extrema ou na falta dela, percebem que  a parte boa estava no percurso  da procura. Foi nessa fase que, mesmo sem perceber, viveram intensamente, foram livres e apreciaram o mundo com todos os seus sentidos, pois nunca precisaram de outra parte para serem felizes e, agora, a parte que os completam  também os tornam incompletos, dando-lhes consciência de sua incompletude.
 
Talvez, imbuídos pela descoberta reveladora do próprio "eu", percebamos que a felicidade sempre esteve ao nosso lado e não foi notada; que a busca era uma ilusão, que somos completos em nós mesmos, pois não são os outros que nos completam.  A outra parte é tão incompleta quanto nós, mas é perfeita e necessária como companheira de jornada na eterna busca daquilo que  nos falta, mesmo que não  saibamos o que  procuramos.

Todavia, até  descobrirmos isso e enquanto não encontramos esse algo ou alguém que acreditamos ser a outra metade, a busca continuará sem permitir nossa felicidade. E assim, as metades continuarão se procurando nesse eterno desencontro, pois a outra parte é apenas uma parte da falta que nos faz falta e,  uma vez que a encontramos, sentiremos falta de sentir falta da parte que achamos.  Porém, novas ilusões surgirão das mais variadas formas para fazer-nos retornar à eterna busca de preencher nossas faltas, porque o  sentir falta de algo é o que nos  torna aquilo que somos: simplesmente "humanos".