O livro de Jô

Acabo de ler, com extremo agrado, O livro de Jô, publicado pela Companhia das Letras, em 2017, mais de quatrocentas páginas que relatam a vida do famoso humorista Jô Soares, que anos a fio entreteve, com suas entrevistas, nossas madrugadas no SBT e na Globo – depois de uma consagrada carreira de comediante.

José Eugênio Soares, Jô Soares, Jô ou simplesmente O Gordo gravou horas e horas de depoimentos ao excelente jornalista Matinas Suzuki Jr., que, presumo, deu a forma final ao livro. Não sei se Jô entregou algo escrito a Suzuki Jr., mas a verdade é que ambos os autores parecem saltar das páginas da obra.

É possível sentir o jornalista na impecável redação, no estilo cuidadoso que marca criteriosamente as intercalações – facilitando nossa leitura – e, talvez, no detalhamento de algumas informações. Ao mesmo tempo, está ali o Jô – sobretudo nos episódios pitorescos, alguns muito familiares daqueles que o acompanharam como entrevistador, que também falava muito de si. Jô nem precisaria escrevê-los: repetiu-os tantas vezes e sabe contá-los, com graça, irreverência e mesmo com lirismo.

Passagens hilárias – especialidade do autor – ocorrem aos montes. Eis uma pequeníssima mostra: “O diretor da revista [referência à peça É de xurupito] era o Walter Pinto, um dos reis da noite no Rio. Ele adorava colocar muito texto e muita informação nos anúncios de seus espetáculos, e recomendava aos artistas gráficos: - Coloquem bastante, muitos adjetivos: Rir, Rir, Rir!”.

Seguramente, está entre minhas preferidas a passagem em que Jô conta a história de sua mãe, Mercedes, a Mecha – uma mulher avançada para o seu tempo –, cuja morte em um acidente de trânsito fez do motorista de táxi atropelador um homem amargurado, até o dia em que – dez anos depois – o passageiro Jô Soares entra em seu táxi, fica sabendo quem é o motorista e lhe perdoa – confirmando o que o pai já fizera e a mãe também o faria, pois tinha sido um acidente e não havia culpa. Ambos choram. Momento de comoção.

O sofrimento do filho Rafinha – autista e padecendo de hipospadia - é também um relato que comove, pois o artista já tinha sido acusado de esconder o filho. Jô fala do amor pelo menino e não deixa dúvidas: foi também um grande pai.

Quem não dispuser de tempo suficiente para passar por todas as páginas – que muito informam sobre os anos 60, sobre cinema, sobre teatro, sobre Copas do Mundo – pode escolher uma personagem de preferência e inteirar-se do que Jô tem a dizer. Basta ir ao índice remissivo, pois lá estão Ronald Golias, Max Nunes, Gilberto Gil, Carlos Alberto da Nóbrega e tantos outros cujas vidas se entrelaçam com a biografia de Jô Soares.

Sempre recomendo as biografias benfeitas, sobretudo pela interação que fazem com o momento histórico do biografado e com outras figuras. Sob esse aspecto, O livro de Jô é também exemplar. Abominando a ditadura, que o premiou com depoimentos no Dops, o autor não perde oportunidade de enaltecer a democracia, ele que chegou a hospedar o famoso físico Mario Schenberg na garagem de sua casa. A esse respeito, leia-se a reflexão presente no livro: “Um dos maiores físicos do mundo perseguido por insetos. A vida desse grande brasileiro foi um inferno durante os anos da repressão militar. Além de preso várias vezes, ele seria anos depois compulsoriamente cassado, e não pôde mais dar aulas. [...] fico pensando quanto seria importante esclarecê-los [os jovens] sobre as consequências amplas e profundas de uma vida sob o tacão ditatorial. O país retrocede não só nos direitos da cidadania, mas também no conhecimento, na inovação, na cultura e no avanço científico”.

Jô, reiteradas vezes, se diz um exibido. Há uma passagem – que aqui relato confiando apenas na memória – em que Jô se encontra, se não me engano nos Estados Unidos, com um autor que escrevera sobre um personagem que sabia voar, mas – inibido que era – escondeu das pessoas a sua vocação para o voo. Quando se desinibe e faz uma performance, é colhido por uma bala perdida durante uma ação policial em um prédio, morrendo sem revelar sua arte. Não fosse o Gordo exibido, também nós estaríamos privados hoje de aprender com suas lindas memórias. Viva O Gordo!