Assim ou ...nem tanto. 128

O corvo

Apareceu no campanário da igreja encolhido, escuro, silencioso. Ninguém o sentiu até que, batidas as doze badaladas da meia noite no sino roufenho, o ar pesado fez chegar a todos o piar tímbrico, misto de alerta e aviso, de dor virtual e presságio de morte. Quando todas as orelhas antecipavam o novo grito, a ave, recolheu-se na caixa do relógio e ficou, adormecida pelo matraquear do maquinismo, como se fizesse parte das horas que nasciam ali e ficavam a tiquetaquear a sua inutilidade no sono geral. De manhã, a ave levantou voo em círculos, espreitou a terra arada de fresco, os matos no limite das leiras, o gado que saía dos estábulos e mugia uma alegria mansa. Uma das patas se percebia encolhida o que tornava os voos breves. Quando, por fim, voltou a recolher o cansaço na caixa do relógio, Mendes, filou-o pela pata sã, dominou-lhe a rebeldia, cobriu-lhe a cabeça com o boné e, vagarosamente, desceu até à casa do prior onde tinha trabalho e cama. Aparou a tala de madeira leve, atou-a com tiras de pano velho à pata partida e deu um gole de aguardente ao pássaro com o fim de o domar. O resto do tempo gastou a apanhar insectos que o corvo comia com voracidade. O apetite acalmava com pedaços de carne crua e, presas as asas, Damião, o corvo, passou a fazer parte da Paróquia. Mendes, o sacristão, bem o estimulou a voar quando, sarada a pata, se quis despedir dele. O corvo, porém, decidiu que era ali o novo lar e foi ficando perante o terror do povo que temia que pousasse em suas casas e por isso se finasse alguém. Um dia a ave pousou no beiral da mulher mais velha da aldeia e piou. A ti Maria das cabras achou que era o fim e encomendou rezas e missas. Como a morte não veio protege agora o corvo acreditando que lhe dá sorte.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 21/02/2018
Reeditado em 21/02/2018
Código do texto: T6260566
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