Em casa de ferreiro o espeto é de pau

Era madrugada, saí para comprar um remédio para dor de cabeça. Era impossível esperar amanhecer e àquela hora os serviços delivery já não funcionavam mais. Estacionei o carro na porta da farmácia e, quando descia, percebi que tinha largado a bolsa em casa. Que transtorno, a vinte minutos de casa, para voltar, passando pela ponte estaiada, seriam mais trinta e a dor de cabeça só aumentava, então decidi tentar comprar o medicamento e anotar na "caderneta"... O balconista se levantou do banquinho lá no fundo da loja e veio preguiçosamente me atender. Eu disse o que precisava e ele demorou uns cinco minutos para trazer-me uma caixa de comprimidos para enxaqueca. Uma caixa pequena com dois comprimidos apenas. Ele já estava pondo no saquinho de papel quando o interrompi:

- Moço, esqueci o dinheiro, minhas coisas todas em casa. Será que posso levar e anotar?

O rapaz olhou para mim como uma cara de interrogação. Franziu a testa e a boca e disse um "não" tão seco que a pontada na minha cabeça foi ainda mais sentida.

-Não. Aqui não vendemos fiado, dona.

Tentei respirar profundamente. Em uma fração de segundo me lembrei dos ensinamentos do lama budista que ouço frequentemente, mas a lembrança eclodiu instantaneamente como uma bolha de sabão e senti um impulso de raiva. Como um javali bravo me vi e, como uma cobra, destilei o meu veneno contra o pobre rapaz. Despejei toda a minha ira e disse o que não queria. Ah, o meu descontrole foi tanto que perdi a razão. Chamei-lhe de desalmado, que não tinha onde cair morto. Ele por sua vez, não disse palavra, recuou com seus passos vagarosos para o banquinho no fundo do estabelecimento e se sentou calado. Aí que fiquei mais possessa ainda e gritei uns despautérios. Saí dali cantando os pneus com um martelo a socar a bigorna dentro da cabeça. As lágrimas começaram a rolar na minha face. A dor maior era outra... aquela da consciência. O rapaz era um trabalhador e nada tinha com a minha distração. Saí de casa e, na pressa, deixei não só a carteira, mas também a minha compaixão. Ao passar pela ponte, olhei seus cabos suspensos como braços estendidos ao céu. Pareciam monges em fila numa espécie de olé a reverenciar o aspecto sagrado da vida e meu peito parecia desaguar toda a aflição.

Os olhos na pista enxergavam somente o silente rapaz que olhou nos meus olhos por um segundo e calado, me disse tudo o que eu precisava ouvir.

Minhas lágrimas eram abundantes, minha dor era a da vergonha e a cabeça já não doía mais. Ao entrar no apartamento, olhei a bolsa jogada no sofá. Parecia dormir um sono justo por ter cumprido a sua missão. Ela deveria ser cúmplice do moço tão jovem da farmácia, e ambos estavam a me dizer do quanto essa praticante budista devia aprender.

Deitei-me. Olhos pregados no teto em penumbra. Vi aqueles olhos negros mais uma vez. Surgiu na tela cinzenta o rapaz. Estava de mãos postas a se inclinar na minha direção. Aquele ser revelou-me, naquela noite, o que eu não sabia. Nesse instante, tive compaixão de mim e adormeci.

Cláudia Machado

20/2/18

Cláudia Machado
Enviado por Cláudia Machado em 20/02/2018
Reeditado em 22/02/2018
Código do texto: T6259625
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