RECONSTRUINDO CENÁRIOS

Memórias  de  minha  rua
(14 de fevereiro de 2013) 


Dia desses,no lusco fusco da noite,saí para uma caminhada pelas ruas do bairro onde moro.
Nada além de um certo silêncio,cheiro de comida e uma lua pendurada num céu borrifado de estrelas.
Pelo caminho... Minhas divagações e eu, a solidão dos passos e a cabeça a martelar lembranças.
No ponto exato em que a rua São Paulo é cortada por outra, cuja denominação não me ocorre no momento, reservo-me o direito à reconstrução de cenário, afinal era ali...
A casa de dona Gertrudes, a “Nhá Tuca”.
Passo a borracha na paisagem atual e aos poucos vejo ressurgindo, ainda que meio desbotada, a casinha de madeira cheia de anexos (puchadinhos) que acabava numa cozinha de chão batido, com duas pequenas janelas abrindo-se para a figueira.
Fui entrando.
Nhá Tuca ,com seus quase cem anos,era uma fada sentadinha próxima à janela.
Chovia !...
Era uma daquelas chuvas mansas que benzem e fecham verões.Sob as asas,uma galinha agasalhava a ninhada de pintinhos que acabara de nascer.
Da janela, a idosa os contemplava.
Escorria do telhado uma biquinha de cristal miúdo e a mansidão da tarde igualava-se ao esboço do sorriso que lhe passeava a face.
As primeiras palavras brotaram-lhe entusiasmadas:
-“Nasceram ontem. Não são mesmo uma beleza ?!” Disse-me, apontando para a galinácea.
-Sim ! Foi a lacônica resposta que lhe dei.
( Nem poderia ser outra)
Sob a ramagem da figueira aqueles pequeninos seres, tão amarelos quanto os frutos pendentes pelos galhos do pessegueiro,espiavam o novo  que  o cenário lhes propiciava.
O quintal, lavado de chuva, e aquela mistura de odores de frutas e capim molhado, de ervas de cheiro e plantas.
Aqueles olhos hospedeiros de meiguice e uma quase ingenuidade.O lado criança despertado na anciã a ruminar o tempo na janela que abria-se para o que ainda lhe restava de sonhos.
E, como era bom ouvi-la !
A voz rouca, quase gutural, permeando ternura e alguma ranzinzice ,transmitindo a segurança de quem muito conhecera da vida.
Um pouco abaixo,cumeeiras desafiavam céus, delatando a casa de Zeferino,seu filho mais velho.
Pés de tuna enfileiravam-se abrindo alas à carcaça da cabeça de boi presa ao portão.
-"É para espantar os maus olhados”,enfatizava ele.
Bem mais distante, enfiada entre as pereiras, a casa de vó Maria.Era de lá que ,incumbido na missão de mensageiro, saí à lembrar Nhá Tuca de que na quarta feira era dia de encontro na casa dos " Teixeira ”.
Um grupo de idosas que reunia-se semanalmente para falar das “novidades do mundo moderno” (anos 50),selando os encontros à pratinhos de ágata com leite fresco ,farinha de milho e fatias de marmelada.
De repente um carro aproxima-se de uma das modernas moradias na rua São Paulo.
Discretamente despacho o menino molhado de chuva pelas estradas do tempo,recomponho o cenário atual e ..vou andando,como se nada tivesse ocorrido.
Somos, motorista e eu, dois seres desconhecidos.
À mim,entretanto,cabendo o privilégio de ,muito antes que ele acionasse o controle que abriria o seu portão,a certeza de ter pisado aquele espaço, enquanto quintal ,num dia molhado de chuva, com figueiras,ninhadas e pêssegos amarelos,no ponto exato por onde agora ele estaciona o carro.
Sim ! Era ali ,a "casa de dona Gertrudes".

Joel Gomes  Teixeira