Assim ou ... nem tanto. 127
O Anjo
Estava, de castigo, ligeiramente abaixo da cúpula. Hirto, pétreo, com as asas coladas ao corpo e os olhos vazios. Era um dos vários anjos da catedral. Ao longe parecia um charuto e era preciso correr a nave inteira, aceder ao coro, procurar a escada existente atrás de um São Francisco de madeira policromada e ter coragem de enfrentar a altura para, beirando o limite do telhado, ver de perto o anjo, enorme e indefinido. As vestes toscas, as penas gravadas sem cuidado, os pés descalços sem unhas. Subindo o olhar, o rosto fechado, os lábios grossos, o cenho carregado.- Como disse? Perguntei quando a sensação forte de que o anjo falara me tomou bruscamente. – disse, trovejou a boca de pedra, que aproveites para ver tudo agora porque daqui a nada vou tentar voar até ao rio. Estou a forçar as asas a abrir, a coordenar o corpo, a encher o mármore de leveza como antes deste suplício. Quero voltar ao infinito, à eternidade de onde vim, ao lugar manso sem tempo, a ver de lá todas as maravilhas da Criação. Cinco séculos se cumpriram e acredito que seja agora o começo da minha liberdade. Vi-o cheio de pasmo abrir as asas, fazer um impulso ascendente para o voo e, assomando ao topo do rebordo do telhado, assistir ao fim do devaneio. O anjo, sem graça, sem voo, e sem a imponderabilidade da espécie, acabava de estatelar-se na calçada. Por sorte não matou ninguém. O anjo era agora um monte de fragmentos onde, ilesos, os olhos choravam lágrimas negras.