Crônica de uma viagem de trem
Num certo dia, embarquei em uma viagem muito comum para boa parte dos cariocas, mas não muito pra mim. Trata-se de uma migração pendular, aquela do dia a dia de milhões de trabalhadores, estudantes e afins, de ida e volta pelo mesmo trajeto na malha ferroviária.
As viagens de trem possuem suas peculiaridades, como os divertidos vendedores, dos mais variados e imagináveis produtos, com seus bordões, clichês, num vai e vem incessante dentro de vagões lotados, com pessoas das mais variadas características, objetivos, destinos e, inclusive, até classe social.
Neste dia, fui rumo ao centro da cidade, viajando neste cenário "mágico". Eis que surge uma figura que, a princípio, imaginei ser mais um dos muitos ambulantes frenéticos, que caracterizam as viagens ferroviárias, o nosso "Expresso do Oriente". No início do discurso do fulano, não prestei muito atenção, pois achei que era mais uma tentativa de venda. De repente, uma fala do cara me chama atenção. Ele diz: - As mulheres têm que ser valorizadas. Elas têm que dar conta do marido, dos filhos, da casa, trabalham fora...e o homem não dá a mínima pra isso! Confesso que a partir daí comecei-me a voltar para o falante. Achei sua fala interessante. E o homem continua:
-Os homens têm que levar flores para suas esposas...lembrei-me da música da Ana Carolina que diz " ...toda mulher gosta de rosas..."
Até aí estava tudo dentro dos trilhos, quando o rapaz começa a ficar polêmico e diz: - É por isso que hoje as mulheres estão ficando com mulheres, pois uma entende melhor a outra, já que os homens não as valorizam. Pensam que todos os homens são ogros! Mulheres, nem todos os homens são ogros, não!
Aí pensei: - Agora ele conseguiu chamar a atenção de quase todo o vagão.
E ele continua: - Vocês, pais, têm que orientar direito seus filhos. Mostrar a realidade financeira pra eles, levá-los a lugares carentes, dar uma enxada na mão dele e dizer que se ele não estudar, vai ter que usar a força bruta.
Gostei dessa última fala. Pra mim, houve uma certa relevância. Mas o camarada resolve voltar à polêmica e dispara:
- Vocês, pais, têm que perceber se seus filhos estão ficando afeminados. Isso é coisa do diabo. Isso não existe! Homem é homem, e mulher é mulher!
Agora lembrei-me de outra música, a do Falcão, que cita "...homem é homem, menino é menino, macaco é macaco, e v..."
- Pronto, agora esse cara vai ser linchado nesse vagão lotado. Vai acontecer uma tragédia. Pensei.
Mas o homem não se intimidava e continuava a comentar sobre esses assuntos. Achei aquele ser de uma coragem tamanha, vide a atualidade em que vivemos, na qual esses assuntos são super delicados e passivos de punições.
Depois de soltar outras frases, digamos, no mínimo machistas e/ou homofóbicas, o homem solta: - Bom pessoal, se me permitam, agora vou trabalhar. Fiquem com Deus e tenham uma boa viagem.
As pessoas ficaram se entreolhando, o homem desceu na estação seguinte (ileso) e seguiu seu destino (assim eu acho).
E assim a vida de cada um seguiu também, o homem deu seu recado, aparentemente nada mudou e tivemos uma exposição de democracia naquele vagão, que é o que mais caracteriza as viagens de trem: a diversidade. Até de opiniões. Fim da linha.