Desvio de bagagem
Quando a minha paciência ainda me permite assistir a algum noticiário fico imaginando para onde iremos caminhando na direção em que estamos indo no Brasil. Quando vejo a indicação de alguém para o Ministério Público Federal para ocupar a pasta de Ministro do Trabalho e a indicação vem acompanhada da denúncia de que a pessoa não respeita as leis trabalhistas desse país, que passou por cima dos direitos dos seus empregados e que usa os seus privilégios e apadrinhamentos políticos para se safar das conseqüências de suas negligências, fico envergonhada. Mais ainda quando vem alguém do governo defender e justificar que fatos como esse não podem interferir na vida política da digníssima candidata ao cargo, que a sua vida particular é paralela ao seu desempenho político, para o qual a mesma está muito bem qualificada. Mais adiante vem o representante do governo de Minas defender a indicação do diretor do Detran-MG, que teve a carteira de habilitação cassada por ter ultrapassado o limite de pontuação definido em lei, sendo a maioria das infrações por excesso de velocidade. Também tem como defesa o pressuposto de que a competência do indicado não pode ser prejudicada por atos que não foram praticados na sua área de atuação no trabalho. Gente, acho que a nossa política perdeu a noção, a direção e a vergonha na cara de seus dirigentes... Como alguém pode ser a autoridade máxima da Justiça do Trabalho se não respeita as leis que emanam desse órgão? Assim como que autoridade tem para regulamentar as leis do trânsito, aquele que não as cumpre? Talvez a mesma autoridade que têm os nossos digníssimos representantes do governo, que usam a capa da imunidade para cobrir a vergonha da impunidade, acobertando crimes que fazem arrepiar os cabelos daqueles que ainda lutam pela justiça e pela igualdade nesse país.
Tenho muita pena do nosso povo, com o qual padeço na privação de muitos de nossos direitos que só existem no papel. Hoje somos descartáveis nas prioridades políticas. Nossa voz já não alcança aqueles que nos representam, o foco das prioridades tomou outros rumos. Infelizmente fazer parte da política para a maioria de nossos representantes é para defender seus interesses e não o interesse do povo. A corrupção e a ganância disseminaram no Planalto, nos estados e municípios. O princípio da moralidade está chegando ao fim. Ninguém se escandaliza mais com os mandos e os desmandos, com os privilégios e saques nos cofres públicos, com os desvios de verbas que condenam a nossa população mais pobre a sucumbir nas filas de hospitais, a estagnar na pobreza e lutar para sobreviver, ao invés viver plenamente seus direitos com dignidade.
Começamos nosso processo de endurecer o coração com a violência. Antigamente, ver um acidente ou uma tragédia nos tirava o sono, nos causava revolta, nos tocava profundamente. Éramos solidários com quem sofria, companheiros nas horas difíceis, presentes nos maus momentos. De repente, mudamos. A exposição diária de desgraças que vemos na TV todos os dias nos fez acostumarmos com a dor, banalizou a barbárie, começamos a achar normal tudo que dilacera o ser humano, porque é com o outro, não faz parte de nossa história. Só dói quando nos atinge, quando fazemos parte. Com o outro, o conforto é a distância. E assim fomos ficando indiferentes à dor do mundo, alheios ao que acontece do outro lado de nossas ruas. E hoje a violência corre solta lá fora enquanto cada um de nós se tranca cada vez mais dentro das paredes de nossas casas. Nos acostumamos. Assim como acostumamos a ver tudo que acontece na nossa política e não fazemos mais nada. Tudo ficou normal. Depois de tantos roubos, tantos desvios, tanta corrupção e ainda continuam lá, de mãos dadas com aqueles que se dizem os defensores da justiça, cada um dando guarida ao outro para manter seus privilégios, seus apadrinhados e suas regalias, nossa gente perdeu a vontade e a coragem de lutar. Estamos todos reféns do poder, sonhando por mudanças de braços cruzados, pagando, e pagando muito caro para ver como é que fica. Fazer o que? Como eu disse, perdemos a coragem e a vontade de lutar. Mas o que eu acho mais triste é perceber e a perda mais preciosa: nossa capacidade de nos indignar. Sem indignação somos robôs, movidos à energia alheia, desprovidos da nossa capacidade de pensar, incapazes de agir de acordo com a nossa vontade, sem discernimento no olhar e sem altivez na voz. Somos só passageiros do tempo. Difícil viajar desse jeito, quando a bagagem mais cara fica perdida lá atrás. Tomara que alguém encontre nossas malas de dignidade e nos devolva no galeão mais próximo.