BISCOITINHOS DE LAMA
A estrada era longa e a poeira do barro entrava na condução mesmo com os vidros fechados. Soraia é quem tinha inventado aquela viagem àquele fim de mundo. Já tinham derrapado em um trecho e alguém já tinha “cantado a pedra” que era melhor desistir e voltar para casa. Jerônimo tentava animar cantando algumas músicas sertanejas, mas já o haviam ameaçado de morte se continuasse aquela tortura. E quem foi que inventou de trazerem a tartaruga? Será que a bichinha ainda estava viva? A coitada estava toda encolhida desde que derraparam naquela mancha de óleo que já tinha sido vista assim que começou a descida, mas o palhaço do Roberto tinha certeza de que era cocô derretido no concreto. Foi um susto só e tiveram que sair correndo, porque a Marieta vomitou não só o carro, mas em todo mundo, enquanto giravam na pista. Dá para imaginar aquele vômito flutuando e lambrecando todo mundo? Quem foi que deu vitamina de abacate para a menina, hein?
Precisavam fazer uma paradinha, porque o Nelsinho já tinha perdido as contas de quantas vezes ele avisou que estava apertado para fazer xixi. Era um tal de “segura só um pouquinho”, e engrenavam na conversa e esqueciam o menino que não parava de tirar meleca e esfregar no banco do carona. Quando decidiram parar notaram que o banco já estava todo molhado e o Nelsinho já estava brincando de bater com a canequinha no casco da tartaruga que continuava imóvel.
- “Não falei?” – gritou D. Sonia. “Sabia que o guri não iria segurar por muito tempo, tchê!”
Dona Sonia não era gaúcha, mas adorava fingir que era. Foi assim que conquistou o Seu Afonso e ele só descobriu que a mulher não era do Sul, quando chegou a parentada para o casório em um ônibus onde se lia: CARRASCO BONITO. Onde diacho ficava Carrasco Bonito? Descobriu que eram de Tocantins e que Dona Sonia era conhecida lá como Gaúcha mesmo, porque adorava fazer churrasco e conhecia toda a tradição dos gaudérios.
Dionísio perguntou há quanto tempo já tinham saído da rodovia e entrado naquela estrada de chão que não acabava nunca. Todos ficavam repetindo de quando em vez que foi Soraia quem inventou aquele passeio. Tinham saído às 5h da manhã e já eram quase 2h da tarde. Mas, que raio de lugar longe era esse que a Soraia queria que conhecessem? Já estavam há tanto tempo naquele sufoco que tinham esquecido para onde iam.
Marieta começou a chorar com fome e estavam com medo de lhe dar comida depois do tinha acontecido. O calor era insuportável, já tinham comido todos os sanduíches que levaram e sobravam o chimarrão de D. Sonia, duas maçãs, o garrafão térmico com metade da água e um saquinho de biscoito amanteigado que estava na mochila do Nelsinho. Ninguém se atrevia a pedir um biscoitinho, porque o Nelsinho já tinha aberto o saco e já tinha enfiado aquela mãozinha suja de meleca lá dentro, duas vezes.
- “Soraia, para onde estamos indo mesmo?” – atreveu-se Dionísio.
- “Esqueci o nome...” – respondeu bem baixinho, fingindo que estava se engasgando.
- “O quê?” – perguntaram em uníssono, D. Sonia e Jerônimo.
-“Ela disse que esqueceu o nome...!” – respondeu Roberto.
-“Esqueceu tia?” – perguntou Nelsinho, limpando a nareba e olhando para o saquinho de biscoito amanteigado.
-“Esqueci o nome, mas sei onde fica, tá? Já estamos quase chegando. Eu vim aqui com a turma do salão. Viemos com o Seu Valdomiro da farmácia e gostamos muito. Vocês vão adorar a cachoeira”.
-“Você não falou nada de cachoeira, guria. Barbaridade, eu nem trouxe o meu maiô!” – já ficando muito zangada, D. Sonia falou e fez um muxoxo cruzando os braços e tentando se arrumar na Kombi apertada.
-“Tenho fé de que já estamos quase chegando, não é comadre?” - profetizou Dionísio, como quem tenta amenizar os ânimos.
-“Bem, acho que sim.” – respondeu Soraia, olhando de soslaio para Roberto que suava “em bicas” e estava a ponto de ter uma síncope pelo cansaço provocado por aquela viagem que já durava mais de 8h.
-“É por ali! Chegamos!” – Soraia soltou um grito, seguido de palmas, assobios, dois espirros e um cheiro horroroso, daqueles de flatulência e olharam, como se tivessem combinado, para a pequena Marieta que além do pum, tinha vomitado novamente.
-“Ai, Jesus!” – comentou Jerônimo, colocando a mão na boca com medo de vomitar também.
Saindo pela direita da estrada de barro, percorreram uma pequena trilha por onde só passava um carro por vez; se alguém estivesse na direção contrária, a coisa ficaria complicada. Roberto percebendo o perigo que poderia passar pelo estreito espaço, resolveu acelerar mais um pouco e, antes que Soraia o avisasse que tinha um atoleiro logo à frente, a Kombi já estava patinando e espalhando lama para todos os lados. Quanto mais Roberto acelerava, mais o veículo afundava e começou a sair fumaça do motor.
-“Pare Roberto! Vamos sair do carro antes que ele afunde!” – D. Sonia gritou e já foi abrindo a porta e pulando no meio do mato.
Com o motor já desligado, saíram todos, menos Marieta e Nelsinho que estavam dividindo os biscoitinhos amanteigados, alheios a toda situação.
Depois de muita discussão sobre o que tinha acontecido e como deveriam fazer para sair dali, Soraia assumiu a direção e Roberto, Jerônimo, Dionísio e D. Sonia começaram a empurrar o veículo. Foram muitos balanços, muitos banhos de lama, sete tombos, vinte e cinco palavrões e centenas de promessas de “nunca mais saio com essa gente!”, até que conseguiram tirar o carro da lama.
Sentaram para beber água e, olhando pela primeira vez para a paisagem, observaram que estavam diante de um lago quase seco e sujo. Onde estava a cachoeira? O local estava sujo, abandonado e nada de cachoeira. Todos olharam para Soraia que assobiava olhando para o chão enquanto brincava com um graveto. Ninguém falou coisa alguma. Já era quase noite. Não pensaram duas vezes: decidiram voltar!
Marieta e Nelsinho já estavam dormindo. Nelsinho com a roupa molhada de novo e Marieta com o vestidinho sujo de vômito e chupando a cabeça da tartaruga.
Reorganizaram a Kombi e sentaram todos em silêncio. Roberto fez uma oração antes de ligar o carro com medo que não pegasse e suspirou bem alto enquanto acelerava o motor e partia de volta para casa.
Após algumas horas, Marieta acordou tossindo, tirou a tartaruga da boca (que milagrosamente ainda estava viva), olhou para Nelsinho que dormia de boca aberta, sentou e olhou pela janela. Sem entender o que estava acontecendo perguntou à D. Sonia se já tinham chegado à cachoeira.
-“Quase, querida, quase!” – respondeu enfadonha, mas carinhosa.
-“Quando chegar me avisa?” – pediu Marieta, deitando e colocando a tartaruga de volta na boca.
Quatro horas depois, Soraia quebra o silêncio: -“A Marinalva disse que conhece um sítio muito bonito em Pintópolis. O que acham de marcarmos um novo passeio na semana que vem”?