Olhos verdes de Beirute
(Crônica a bordo de um avião da Saudia (Saudi Arabian Airlines, em 23/09/1975, entre Beirute e Jeddah)
Um dia, tudo isso será apenas um rosário de lembranças a ser desfiado. Chegará o momento.
Um dia, acalentarei outros fantasmas. Um dia, outros mosquitos impertinentes zumbirão em volta da minha cabeça. A lembrança de Naji, o cristãozinho de olhos verdes, o que repetiu três vezes a primeira série ginasial, ainda está viva. Talvez ele esteja acenando para um avião que cruza os céus de Beirute, pensando no estrangeiro que lhe deu tanta atenção.
- Naji, vocês são cristãos?
E ele, o inglês vagaroso, mas perfeito:
- What do you mean by Christian?
Talvez ele não conheça essa palavra. Dou uma força com meu rascunho de árabe e ele entende:
- Yes, we are.
E com um brilho nos olhos, antecipando um futuro Kataeb, um fanático de amanhã, diz o Naji:
- We love God!
E reforça com o sinal da Cruz e um santinho, um coração de Jesus.
- Mas por que eles brigam, Naji? Você entende?
Nos seus olhinhos verdes, a inocência ainda toma conta:
- La aref. Não sei, não sabemos. Papai costumava ir à igreja todos os domingos, rezava, trabalhava durante a semana, de repente acabou-se. Hallas! Não se pode fazer mais nada.
Não sabemos de nada. Só que não há mais missa nem pão.
Enquanto Naji desfia o saco de maldades que ronda sua vida, o táxi vai procurando as ruas menos perigosas. De repente, de um caminhão cheio de jovens armados de metralhadoras, estacionada em uma esquina, salta um soldado. Penso: é agora.
Mas nada. Era apenas um sobrinho do chofer ou coisa parecida. Cumprimentam-se, o rapaz não tem nem 25 anos, sorri, faz alguma piada e volta junto dos companheiros. São soldados Kataeb, as Falanges Libanesas, patrulhando as ruas do bairro cristão. Mais uma das muitas “polícias” libanesas.
Tudo isso fará parte de um rosário no futuro. Cada vez mais me sinto fora de casa. Isso é bom, pois me ajudará a reconhecê-la quando tiver chegado o tempo de voltar.
125 libras libanesas para os táxis que me conduziram do aeroporto ao meu destino. Isso equivaleria a 3 diárias em um ótimo hotel. Mas segundo os choferes era pouco para o risco de andar por Beirute em época tão atribulada pela guerra civil. E fui baldeado, comboiado, guindasteado, rebocado, até que estava de volta ao aeroporto, são e salvo.
O pai de Naji está orgulhoso do inglês do filho, o garoto que fala com o estrangeiro e permite a comunicação. Reúno e agrupo grotescamente, com certeza, todos os meus vocábulos de árabe e digo-lhe que o menino promete, para animá-lo mais ainda. E não sei se por isso me convidam para almoçar, quando estacionamos para fazer a baldeação para o lado muçulmano. Digo que não, venho de outra vez, tomo nota do endereço, afinal de contas estes são tempos de guerra e a digestão não se processará normalmente. Além do mais, Najji me dissera que nem pão agora se pode encontrar em Beirute. Prometo que volto quando tudo melhorar e se despedem buzinando alegremente.
(Naji terá hoje, dia 22/01/2018) os seus 50 anos, se tiver sobrevivido às inúmeras guerras e atentados terroristas que ensanguentam o mundo, especialmente o Oriente Médio.)