Por ventura não ocorreu o planejado
Já por acidente eu estive ali. Naquela loja de roupas, de canto a canto havia quem as esquadrinhasse, mulheres em maior número. Às vezes, esbarravam-se inevitavelmente entre si, à moda sabática mesmo. Nada me emprestara muito prazer até o momento, exceto o fato de eu estar na presença do meu tio Gilvan – pai que eu teria de um jeito ou de outro.
Gostou desta?, ele disse, com o olhar em já outro item.
Sim, eu digo, hesitante.
Fazia menos de 5 minutos que demos entrada na loja, eu ainda não tinha reaquecido o gosto. Escolho por comparação, e sou seletivo demais.
Esta é bonitinha, ele falou, mas o que deprecio nela são esses cortes, quer dizer, é que são muitos.
Meu tio também era seletivo, o mais da família, inclusive.
Verdade... botou-as a perder!
E então...
Talvez meu tio até gostasse daquele estilo indumentário, ainda mais ao saber que estava em alta. Oportunamente, contudo, ele resmungava a discordância entre os usos habituais: erguera-se crítico forte dos que compram roupas levemente desfiadas e cuidadosamente desbotadas e ao mesmo tempo descartam roupas que de tão usadas logrem iguais características.
E aquela, tio?!
Qual? A vermelha?
Sim...
Você quem sabe. Quer provar?
O senhor não gostou, então não.
Ah, não, cara. Tem que ser à sua realidade.
A minha realidade, no tal contexto, é o meu costume. Logo, a roupa escolhida deve adequar-se ao meu modus vivendi. É bem verdade, não obstante, que essa maneira de escolher tem a ver com os costumes (realidades) das classes. Segundo essa linha classista – estereotipada –, devo-me vestir a gosto, cuja formação, no entanto, dá-se com vista aos outros. A angústia da mecanicidade, ora disfarçada, a que esporadicamente meu tio se assujeitava.
Segure estas duas calças, disse ele, e espere na fila para o provador.
Estas? Certo.
Vá logo!, ele asseverou num tom disciplinante e empurrou-me às costas.
Meu pai faleceu aos 22 anos, quando eu só tinha dois. Desde então (na verdade, dois anos e nove meses antes!), ele passou a cuidar de mim e do meu irmão gêmeo em escala de pai e filhos.
E olha-se nós dois juntos cumprindo com o que menos julgamos querer: compras. Isto nos custou cinco horas a palmilhar todo o comércio.
Onde é a fila?, ouço distante.
Ao ouvi-lo, eu que analiso as calças apoiadas em minhas mãos, de imediato soergo a cabeça na transversal do último provador à esquerda; eu estou à direita.
Lá no fundo!, alguém responde, ao que a simpatia indica, uma atendente.
Mas não me interessa.
Agora, reerguido, percebo que uma moça de cabelos loiros cor de mel e olhos verdes sorri para mim. Foi rápido. Assim que levantei o rosto, o olhar ainda sem diretriz a calcular quem quisera saber onde era a fila, eu a vi sorrir-me pressurosa e reacionária como se me esperasse atentar-lhe. Pena que não o fiz, não como ela merecia.
Moço, alertou-me a inspetora, chegue mais perto, você é o próximo.
Desajeitado, caminhando, olho para trás e vejo meu tio apalpar outra calça, desta vez muito mais entusiasmado com a peça que outrora - apesar dos detalhes alegóricos a ela inerentes.
Psiu!, ele avocou-me, por que não prova esta também?
Vou provar, eu digo. E já adianto que, à primeira vista, é a que eu mais gostei.
É? Eu também. Corre, é a sua vez!
De fato! Fomos precisos quanto à melhor calça. Ficamos com a última que se nos deu a saber. Na verdade, pouco perpassou o crivo de meu tio e foi aprovado por engano.
E aí? Só vai ficar com essa?, nossa atendente perguntou.
Sim, respondo, foi a única que coube adequadamente.
Entendo. Vai ser à vista ou no cartão?
Havia recebido da minha avó o dinheiro de pagar a compra da calça desde que me arrumava para sair. Mesmo assim, fui saber do meu tio se pagaríamos tudo ou dividiríamos em duas ou três parcelas, quem sabe.
Um momento, por favor. Vou-me informar.
Claro.
Meu caso era bem mais que prudência, era paixão. Pois eu não conseguia esquecer aquele sorriso mais ou menos correspondido – platonicamente. Sentia-me distante de tudo e todos, logo inapto a regatear um produto com atendente tão primorosa que é a nossa.
Tio, vou fazer uma pergunta bem retórica: é à vista, não é?
Sim, ele sorriu. Deixe dessa mania de falar de modo culto, cara. Fale assim só na hora do “vamos ver" (em apresentações). Aqui, não.
Meu tio era culto. Mas por que não me deixava sê-lo também?
Sei com quem estou a falar, eu o advirto. E só então porto-me de tal maneira.
Meu tio me requeria apenas, e eu sempre soube, a adequação ao meio. Podia notar igualmente que eu lhe figuraria arrogante se continuasse loquaz, e enfim parei.
Está seguro que é essa a calça?, ele indagou resoluto.
Estou...
Estou, não. Fale se sim ou se não com firmeza, porque depois, já era.
Sim!!
Quando íamos ao caixa efetuar o pagamento, lembrei do sorriso da loiraça. Não fiz cerimônia para procurá-la, mas foi inútil. Houvera-me agradado tanto aquelas músicas sertanejas no rádio que deixei a moça partir.
Nesse ínterim, eu dava a entender, com um virar de cabeça sem fim, que algo me preocupava.
“Tchau...”, pensei.
Está com fome, meu filho?, meu tio interveio, astuto.
Foi a única ideia que lhe surgiu pertinente ao momento.
Enquanto ainda estava na loja, dividi-me em dois: mente e corpo. Este último necessitava alimentar-se, afinal eu almoço cedo e passava em pouco das 12h00. A primeira, creio, supria-se de uma fustigante nostalgia, irreparável.
Dentro em pouco saíamos da loja às trombadas, assim como entramos.
Agora, porém, eu me sentia feliz. Resolvera de uma vez por todas não mais me introverter em função alguma e abordar a moça se a visse de novo, sem condicionais - um avanço para um aprendiz de nerd como eu.
Apesar do cansaço, foi bom, não foi?, meu tio interpelou desacreditando ouvir uma resposta positiva.
Oxe! Foi muito bom!, entusiasmo.
E a gente nem queria vir, está vendo?!
Era o fim, eu sabia. Mas era rotina... Então... um suspiro e uma expiração em estacato deu conta de expurgar-me a inércia romanesca, e viver.
Por ventura não ocorreu o planejado!, asserto, pouco antes do carro ruir, o ar-condicionado ligar e o primeiro silêncio intermitente restabelecer-se em meio a turba da avenida.