____________Coisas da Meia-noite


E quando a gente pensa que já viu de tudo... Olha lá! Ontem, por volta de meia-noite, indo fechar minha janela, dou com um carro de faróis baixos quase parando no meio da rua. O que será que o motorista observa a estas horas mortas, na rua deserta e sombreada pelas copas altas das árvores da calçada? De repente, vejo também o que ele provavelmente vê: uma sombra enorme e escura que desliza junto ao muro da casa em frente. Por um momento, juro, digo a mim mesma: “Lobisomem?! Lobisomem existe, uau!”.

Claro que imediatamente descarto minha doidice. Mas se o monstrengo homem-lobo não passa de uma lenda, então que diabos é aquela sombra que o motorista e eu testemunhamos com nossos olhos que a terra há de comer? De súbito, a bizarra figura se destaca num ângulo mais favorável, se revelando aos olhos estupefatos que a vigiam: com uns sessenta de altura, medindo mais de metro e meio — calculados da cauda enorme, à guisa de um gigantesco espanador, e o focinho afunilado e cilíndrico — temos ali nada mais nada menos que um  precioso Tamanduá-bandeira!

Mas o que um Tamanduá-bandeira, espécie já em extinção, faz em frente à minha casa, num sábado, à meia-noite? Como saber? O bicho segue cheirando o chão. O corpão bamboleante parece dançar numa insólita coreografia e mal posso crer no que vejo. Convenhamos, nada usual, numa área central da cidade, se dar semelhante cena. Que fazer? Ligo pro 190 para informar a aparição da joia que no momento dá sopa na minha rua.

Atendem na emergência, mas quem me escuta, pelo tom da voz, parece não acreditar: “Um tamanduá?!”. Naturalmente, ele pensa ser um trote e não lhe tiro a razão. “Um tamanduá na rua, à meia-noite de um sabadão? Ah, vá pentear macacos!”, deve pensar lá com suas divisas e galões. Mas insisto, dou detalhes, faço-o crer que o assunto é sério. Por fim, ele diz que vai avisar a viatura mais próxima e tentar um contato com a Polícia Florestal.

Frustração! Vejo que nada vai acontecer com o papa-formigas que lá se vai sumindo na esquina. Que pena! Sumiu a preciosidade... Mentira! Sumiu nada! Olha ele voltando pelo mesmo caminho. Nesse meio-tempo, algumas pessoas vão chegando. As casas vão se abrindo e moradores, munidos de seus celulares tentam fotografar ou filmar a celebridade peluda que nos presenteia com sua insólita presença. Acompanho da janela o pequeno ajuntamento que se faz. Uma senhora que pula da garupa de uma moto quase entra em colapso: “Cadê a polícia, gente? Alguém já chamou?”. “Sim! Já chamou” — lhe informam, embora ela não se conforme e faça ligações ela mesma do próprio aparelho.

A rua, agora, é um pequeno formigueiro — coincidência ou não, prato preferido do tamanduá que, com sua língua viscosa e comprida, chega a comer umas trinta mil formigas por dia. Um grupo de discussões se forma ali, dividindo opiniões. Alguns têm certeza até sobre o lugar de onde ele vem: “Dum mato lá pros lados do Gomes, onde estão cortando cana. Mexem no habitat e o bicho perde o rumo!”.

E as providências para a captura? Nada. Até agora nada, e nem pelas próximas horas, suponho. Grupos de WhatsApp entram em ação, e o que se vê são só luzinhas de celular. E o Tamanduá? Enquanto o povo discute sua vida ele envereda por uma ruazinha e se vai. Pois é... A equipe de resgate dá bandeira e deixa o Bandeira escapar. Aos poucos, os curiosos, meio chateados com o desfecho do episódio, vão se retirando. Não sem antes ouvirem o motoqueiro que volta com notícias: “Gente, o bicho acaba de entrar num matinho lá na frente...”.

Fim da inusitada aventura, fecho a janela e um pensamento “Um tamanduá incomoda muita gente, menos a quem  mais deveria interessar”. E vou dormir que já é tarde... Se conseguir depois desta.