Supérfluo.

Palavrinha mais chata essa viu.
É só chegar uma crise que ela logo dar o ar da graça.
Quando eu era criança nem sabia que ela existia, minha mãe também não. Ah, mas se ela soubesse, com certeza tinha esfregado na cara da gente. Sim, porque era um tal de “ não, eu não vou comprar isso porque não tem precisão” “ vocês precisam é de comida na mesa, de livro e caderno pra estudar” “ você pode muito bem passar sem isso”...
Em compensação o necessário ela comprava até demais.
Eu digo que vivi mesmo um tempo de fartura. Fartura do necessário.
Hoje os biscoitos são em pacotinhos. Na minha infância eram latas enormes com aquelas tampas redondas. Manteiga do mesmo jeito. Açúcar e farinha eram em sacos. O necessário era com fartura. 
Eu ficava olhando aquela lata enorme de manteiga. Não sei pra que tanta. Poderia comprar a metade, e o restante trocava por sorvete. Pensava eu.
Mas o bendito do sorvete não tinha precisão.  Era o tal do supérfluo.
Ah, o sorvete! Como eu sonhava com esse danadinho.
Achava lindo, ficava imaginando que gosto tinha. Quando achava uma figura de sorvete em algum livro,ficava admirando, comendo com os olhos. ...um dia vou experimentar, eu pensava. Mas era supérfluo, minha mãe não comprava. 
Se a professora pedisse dez livros na nota do material escolar, ela comprava os dez. Mas, sorvete não.
Eu nem lembro quando foi a primeira vez que experimentei. Esse dia deveria ter ficado marcado.
Eu sei que hoje quando eu vejo alguém entrar numa sorveteria e escolher só um sabor, eu penso que é besta. Meu esposo é assim, só pede coco branco. Imagina se vou tomar só um sabor! Eu já pego a plástica imaginando quantas bolinhas vão caber ali dentro. Isso mesmo “ bolinhas” que é pra por muitos sabores. Ficar bem colorido.
E eu faço mesmo. Alguém passa olhando e eu imagino que a pessoa quer perguntar: _  Não teve infância? 
E eu doida pra  responder: _ Tive sim, o que não tive foi sorvete.
E eu gosto de entrar naquelas sorveterias que tem bastante sabores. Se pudesse experimentava todos. E vou colocando, colocando... Daí eu sento e fico ainda admirando aquelas fotos que eles costumam por nas paredes ( risos). 
Ah supérfluo que me maltratou na infância! 
Puxa mãe, bem que a senhora poderia ter diminuído aquela manteiga. Eu teria trocado  por sorvete.
Na escola sempre quando era dia de desenho, era sorvete e o sol saindo, que fazia no papel. Quando esquecia de escrever meu nome, a professora já sabia de quem era o desenho. 
E só depois de adulta que fui perceber que o desenho do sol saindo, eu colocava três montanhas e o sol.
Mas não é que pareciam quatro bolas de sorvete, gigantes! Só pode!
Acho que todo mundo teve uma coisa que queria muito na infância e os pais não podiam dar.
                         
Élia Couto Macêdo
Enviado por Élia Couto Macêdo em 20/01/2018
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