Para ler (e entender) o que faz o pato donald

Outro dia eu fui com minha filha acampar no sítio do Bosco. Uma gleba de terras na serra da Ibiapaba, município de Tianguá, Ceará. Um lugar agradável, bonito e bem familiar. Típico lugar bucólico. Típico para quem gosta de uma saidinha da rotina monótona do meio urbano e suas luzes cibernéticas em rede.

À noite, depois de um dia de grandes aventuras numa tirolesa, numa piscina gelada, numa caminhada por trilhas e num delicioso banho de cachoeira, também gelada, eu e minha Ana Maria, no auge de seus 11 anos, sentamos num balanço e fomos conversar sobre a vida. Dias antes deste passeio ela me fez caminhar a cidade inteira atrás de um livro de um tal Felipe Neto. Nunca tinha ouvido falar do sujeito até ela dizer que o cara era um youtuber bem famoso (para elas e todos de sua pouca idade). Me fez ver vários vídeos do “gênio”. Várias gravações dele em cenas infantiloides. Confesso que vendo com ela aquela encenação do tal famoso da internet me senti até aliviado por não vê-la, em tão tenra idade, sendo sensualidade pela TV maciça que tudo transforma em sexo.

Ali, naquele balanço, na bucólica e lenta vida no campo, minha filha me fez a seguinte proposta: que eu a levasse à Disney. Talvez porque o tal Felipe Neto tenha mostrado em um de seus vídeos o maravilhoso e cruel mundo mágico de cores. Maravilhoso pelo brilho que encandeia a vista (e o cérebro) das crianças e adolescentes e cruel pelo mesmo motivo. Pois bem, considerando minha tentativa de trazê-la para o mundo dos mortais, travei o seguinte debate argumentativo.

_ Filha, tenho outra proposta para te fazer. Vamos pensar assim. Você sabe quem foi Walt Disney?

_ Sei, oras. O cara dono da Disneylândia.

_ Não. Falo do homem que inventou aquilo tudo.

_ Ah, tá! Sei lá. - Falou num tom de desprezo.

_ Deixa eu te explicar. Ele nasceu na Paraíba. Num lugar chamado Parari, com cerca de 1800 habitantes e um dos mais pobres do Nordeste. Quando menino o pai foi trabalhar numa fábrica de sabão lá em Chicago, EUA, e levou ele. Ali ele começou a desenhar umas coisas, enquanto o pai trabalhava. Era muito bom com os desenhos. E não era americano coisa nenhuma. Um paraibano chamado Waldisnei.

_ Sério, pai?!

_ Sério. Sabe o Mickey? Um rato que vivia atazanando ele no barraco aonde moravam, lá na Paraíba. E o tal do Pluto, o cachorro? Um vira latas pulguento que vivia para dormir. Waldisnei ficava puto (daí o nome Pluto) com a preguiça do bicho. Ah! E o Pateta? Um cavalo pé duro que não servia nem para puxar a carroça.

_ Nossa. Que palha!

_ Pois é. Então, se você quer conhecer um lugar legal. Vamos conhecer Brejo, no Maranhão. Lá onde a vovó Graça (minha mãe) nasceu e você pode ver muita coisa legal.

_ O quê?! - Perguntou num tom de desprezo.

_ Ué, tem os morros da igreja de Santo Antônio. Tem o bairro Lameiro. Tem o banho do carrapatinho e tem a praça da matriz com o cemitério. Ah, e ainda tem um monte de bicho de verdade. É mais perto. É mais barato. E é mais divertido do que essa tal Disney, aí.

_ Mas pai, lá eu não vou conhecer os irmãos Neto. Os youyubers. Eles não vivem lá. Vivem na Disney.

_ Pois lá em Brejo eu tenho dois irmãos, também Neto, que você vai gostar de conhecer. São tudo gente boa. Um pesca e outro cuida de bode. João Neto e Pedro Neto. São bem legais e vivem lá no meu do mato, na casinha deles.

_ Poxa! Fiquei triste agora.

_ Com a história do Waldisnei, que eu te contei?

_ Não, com a não ida a Disney para conhecer os irmão Neto. Só podemos ir a Brejo.

Complicado falar a uma criança de hoje em dia sobre as ciladas da vida moderna. Antes, não víamos tanta TV e tudo isso era muito distante. Hoje, a vida de “sonhos” e alienação bate à porta e te exclui sistematicamente se você não os presencia como normais dentro das rodas de bate papo nas escolas ou nos aplicativos de conversação. O que antes era contado com bichinhos lindos que nos dominavam com sua “superioridade intelectual”, no contexto de evolução pretendido por líderes americanos, hoje é transmitido por meio de filmes e séries adolescentes, nas quais as famílias daquele país mostram sua “natural e saudável condição familiar classe média estadunidense”. Valores transformados em liberdades individuais, e princípios de coletividade pautados sempre no conflito entre ideias, gêneros e artes.

A história fictícia sobre o homem mais odiado da esquerda norte-americana não surtiu efeito. Ela, minha filha, está enfeitiçada pelo mundo colorido de bichos que viram gente e/ou jovens ultramodernos e livres (no sentido de não terem de dar explicações sobre seus atos) e que serviram (ou servem) para demonstrar o jeito americano de ser. Claro, tentando nos doutrinar e nos distanciar de nossos valores e de nossa cultura.

É esperar e ver os dias seguintes.

VALBER DINIZ
Enviado por VALBER DINIZ em 18/01/2018
Reeditado em 18/01/2018
Código do texto: T6229558
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